terça-feira, 14 de setembro de 2010

Pe.Zygmunt Chelmicki no Brasil. Primeira parte.



Padre Zygmunt CHELMICKI

NO BRASIL

Anotaçãoes de viagens.

Varsóvia, Skład główny w Administracji “Słowa”
Rua Mazowiecka, nr. 11

1892


INTRODUÇÃO

Partindo para o Brasil não imaginava quanto e se de fato conseguiria reunir material mais sério sobre a situação de lá, o que realmente esperavam os emigrantes no além-mar e por outra parte pudesse interessar os leitores.
As minhas anotações esporádicas, enviadas aos periódicos de Varsóvia, não poderiam ter a pretençao de um trabalho mais sério, mas sim­plesmente como relatos do que vi, ouvi e organizei pessoalmente.
Retornando ao pais, convenci-me que aquelas “Anotações” tiveram uma aceitação favorável e até despertaram um interesse mais vivo. Efeti­vamente as circunstâncias convergiram de tal  maneira que em tempo, relativamente curto de minha permanência, colhi valiosos detalhes que lan­çaram uma luz clara, ao mesmo tempo sobre a sorte atual e futura do emi­grante polonês. No Brasil, bem como sobre a situação desse país, sobre sua sorte e sobre a imagem falsa que os agentes procuram criar a respeito do mesmo. Estes pontos  levaram-me a complementar atualmente as minhas ano­tações primitivas e enfeixa-las num todo final. As fotografias por mim trazidas, bem como os desenhos, acabados com sentimento artístico da verdade real pelo Sr. Piątkowiki, oferecerão ao leitor a possibilidade de uma impressão mais objetiva sobre o Brasil.
Entrego o meu trabalho para o proveito do leitor e se o seu fru­to for a dissipação  da última ilusão sobre a “felicidade do além-mar”, se os de boa fé, os irresponsáveis, forem salvos da sorte dolorosa que inevitavelmente os aguarda no Brasil e se, finalmente, formar uma imagem sadia sobre a situação local, serei grandemente recompensado pelos sacrifícios suportados e agradecerei a Deus Todo Poderoso que me permitiu concluir esta missão.
0 Autor
I
            1
            Na Redação. Sr. Nicolau Glinka. Proposição inesperada. Causas. Minha reflexão e  temores. A sorte de Dygasinski. A partida.

O dia 9 de março permanecera para sempre em minha memória.
Como sempre, pelo meio dia, estive junto à minha escrivaninha na redação, coletando nos jornais estrangeiros notícias para o “Przegląd Polityczny”.
Nesta hora reina na redação um solene silêncio, onde se ouve apenas o correr das penas pelo papel, interrompidas de tempos a tempos pelo sino, pelo caracterstico, Chlooopek  -  guri .- apôs o que estende-se uma mão, por detrás das pilhas de papel e  uma tira de papel guri,geralmente futura glória da grafica, embora no momento um simples moleque apanha e leva com urgência para a oficina a fim de que algumas horas  mais tarde se encontre impressa nas  laudas do “Slowo”.
Nesta hora as visitas não são bem vistas na redação, pois  cada minuto é sagrado e a sua perda, mesmo em conversas, as mais agradáveis, ameaça o diário de atrazo, antes, porém a intervenção desse mesmo guri na qualidade de manda-lo para oficina, reclma-se sobre o  delinqüente e reclama com toda seriedade: "os compositores reclamam o manuscrito!" Em verdade há uma inscrição impressa sobre a porta da redaçao:"0 corpo redacional não recebe  interessados e conhecidos antes das 13 horas e pede com veemência para que até aquele horário não seja perturbado em seu trabalho". Mas costumeiramente acontece que exatamente neste horário o número de gentis visitas  é  maior, trazendo transtorno aquele a quem honra com sua visita.
Trata-se de visitas privilegiadas pelo menos, se não pela sua posição particular na hierarquia social, pelas relações de amizade e proximidade com a redação, em vista das quais  pode-se pedir, com toda a liberdade alguns minutos de paciência, enquanto a folha manuscrita não se encontre a caminho da gráfica. Ao rol destes últimos pertences  o prezado senhor Nicolau Glinka que  em qualquer instante e cumprimentado com um generalizado “Aaa!  Querido Senhor Conselheiro!” - em poucas minutos de paciência explicável e cercado pelo corpo redacional.
Em verdade naquele memorável dia para mim, quando, graças as relações tensas entre a oficina e a redação.. 0 relógio apressado apon­tava 12 horas quando entrou Nicolau Glinka e desta feita dirigindo-se diretamente a mim, com breve aperto de mão anunciou:
2
- Venho com um assunto para o Senhor Reitor! Colocando um ponto final na longa linha de palavras, mal alinhadas – falando em parêntesis, que levam os compositores ao desespero, aos quais atribuo o mérito de me poder ler depois que for impresso – acompanhei o estimado visitante ao enexo redatorial.
- Eis – disse – em que posso servir?
Pareciame que o Senhor Glinka tinha uma fisionomia solene. – Sr. Miecislau e o Sr. Antônio – disse – segurando-me pela mão, peço que queiram apoiar minha causa.
Senti arrepios na pele. Qual relâmpago tive o pensamentoÇ eis – que por solicitação do Sr. Nicolau vem a 97ª, octogenária, candidata para o Asilo das Professoras e não há nem um espaço vazio sequer. Com calma alinhei uma série de argumentos para convence-lo sobre a impossibilidade de cumprir o seu desejo.
Nesse interim vieram os demais colegas da redação.. - Redator - disse o Sr. Glinka -  falando curto e objetivamente, você tem que viajar comigo para o Brasil! -          0 que?!     -   partiu   um   grito   em   uníssono   de quatro   lábios. O estimado Conselheiro está em excelente humor- repliquei. - Nunca falei mais seriamente, como neste momento, continuava o Sr. Glinka. Vocês sabem perfeitamente as dimensões que tomou a emigraçã para o Brasil. Gente com mentes confusas pelas promessas dos agentes, ce­deram à doença formal da emigração. De nada valeram os argumentos e persuasivas. Os senhores – afirmam - tem inveja de nossa felicidade. As advertências dos padres ficam sem efeito. Para a primavera todo ser vi­vo tem intenções de partir para o além-mar. Vós mesmos publicastes car­tas que cortam o coração daqueles que, cedendo a propaganda dos agenciadores, foram para o Brasil.  Os relatórios de Dygasinski são um grito de dor e condenação sobre a sorte destes infelizes. Não ha jeito: É preciso que aqueles que experimentaram a desgraça brasileira, eles proprios  tornem-se aviso e amedrontamento para os de boa fé.  Com esta finalidade, com a permissão das autoridades, deliberou-se trazer de volta algumas centenas destes coitados, oriundos de varias aldeias do pais. Eu, há poucos instantes, acertei esta missão, com a condição, todavia de que iremos em dois. Aconteça o que acontecer, seja qual for o resultado pra­tico de nossa viagem, faremos um ato de caridade; o restante ficara nas mãos de Deus.
Quanto mais o sr. Glinka falava, convencia-me de que a viagem para o Brasil, não era uma piada, mas uma questão séria e que recaia sobre meus ombros inesperadamente uma obrigação, simplesmente séria. Não há que estranhar que cai em profunda consternação.
Quando o Sr. Glinka terminou,  reinou um profundo silêncio. Todos ficamos sob a impressão de uma proposição tão imprevista.
3
- Mas como? - insistia o Sr. Glinka.
0 que haveria de responder? Se uma pessoa nesta idade e com tamanhas responsabilidades assumia  missão no alem mar, poderia eu exitar?
- Bem - respondi brevemente - , mas não dependo de mim. Queira o conselheiro dirigir-se ao meu Arcebispo, de quem dependera a ultima decisão. 0 padre é como soldado, vai la, onde mandam..
- Então viajaremos - assevereu meu futuro companheiro de viagem, abraçando-me. Sei que dentro de instantes trarei a permissão e  a ben­ção epi scopal.
0 Sr. Glinka não estava errado. Uma hora apôs, minha partida es­tava decidida. Eis como surgiu a minha viagem ao Brasil.
Graças  a benevolência especial de S. Excia. o Supremo Mandatário do Pais, em 5 dias chegou a autorizaçao, via telegráfica para emissão do meu passaporte. Restava apenas a preparação para a viagem.
Confesso que não possuo nenhuma veia turística. Nenhum passeio constituiu  atração. Especialmente nutria uma aversão insuperável para viagens marítimas. Somente uma vez na vida viajei de navio, entre Vene­za e Trieste, e estas poucas horas  de mar foram suficientes para  me tirar para sempre a vontade de viagens marítimas.
Sob este prisma a viagem não oferecia nenhuma atração. Restava apenas o dever. Desejava compri-lo na medida das minhas forças e capacidades, mas aquilo que ouvi sobre a nossa gente no Brasil, apavorava-me. Será que de fato, ainda que com pequena parcela, cumprirei a minha missão?  Terei sorte de levar  um pouco de consolo e ao mesmo tempo: será que trarei comigo para o pais, material suficientemente atemorizador para que, de tempo a tempo, sirva para recobrará consciência dos atacados pela epidemia  emigratoria?
Este ultimo aspeto inquietava-me sobremaneira. Sei quão  alta é a escala de  exigência de nossa  opinião pública, em relação a cada um a quem coube cumprir uma missão.
Compreensíveis e compassivos somos para conosco mesmos, mas intransigentes para com os outros. Tive um exemplo claro em Dygasinski que viu-se, pelos seus sacrifícios e esforços ingentes, envolvido  numa série de casos  infundados e objeções, as vezes sem sentido.
Certamente a mesma sorte me aguardava, talvez, até mais severa, uma vez que  sob vários prismas partia em condições melhores do que ele.
0 que possa haver de estranho que pesava em minha alma e que pen­samentos tristes pululavam  minha mente. Chegou a tal ponto que final­mente aguardava ansiosamente o momento  em que me encontraria no trem. Vivia sob  a impressão de alguém que esta com frio e mandam que se atire à água.Quiz-me atirar imediatamente, na esperança de que diante do fato consumado, terei outros pensamentos e não o constante temor, a impaciên­cia e visões taciturnas.
4
Diante disto, foi com certo alívio quando, no dia 25 de mar­ço, encontrei-me na estação ferroviária  de Varsóvia, cercado por um grupo de amigos chegados, cujas expressões faciais pareciam dizer: „Confie em Deus e feliz retorno!” e todo aperto de mão  amiga  transmi­tia confiança e coragem. Embarcando  no trem com fé inabalável e espe­rança, disse dentro da minha alma: - Em frente, em nome de Deus!
Foi dado o sinal de partida. 0 trem se movimentou e em meio  a fu­maça somente poude ver o agitar de lenços brancos..
Durante muito tempo fiquei parado junto a janela, com o pensamento voltado para aqueles de quem mal me havia despedido. Contra minha vonta­de uma lagrima rolou pela face.  Observei o meu outro companheiro e ele também tinha os olhos  marejados.  Em silêncio, damo-nos as mãos e sentimos que aquele firme aperto unia-nos para  longo tempo - para sempre.
0 trem prosseguia. Aqui e acolã nas estações estendia-se uma mão amiga, acompanhada de um sincero e cordial: „vão com Deus!.”
Caiu a noite e a fraca luz do vagão não nos tirou da profunda me-ditaçao. Em vista de confusão de idéias e sentimentos a tumultuarem a  mente e o coração, enquanto  as palavras silenciaram. 0  raiar  do dia primaveril sucpreendeu-nos nas proximidades de Betim.

5
II

Berlim. Deslumbrante modificação. Chegada a Bremen. Detalhes vagos sobre emigrantes. Sociedade São Rafael. Padres Schlosser e Prahaz.  Narrações do Pe. Schlosser sobre emigrantes. A presença no "Lloyd" e  o relacionamento com ele. Visita aos emigrantes.  Avisos inúteis. A cidade  nova e a cidade velha. Bremerhaven. Partida para Paris. Reminiscências.
Não estive em Berlim, há 19 anos. Em minha memória, Berlim gravou-se como cidade  integralmente prussiana - rigida, oficial, fechada. P o r i s s o , ardorosamente evitava a Capital da Alemanha reunificada, preferindo caminhos mais longos para não tangenciar Berlim. Que enorme diferença encontrei atualmente. Só a entrada do trem na es­tação local é suficiente para pressentir  que nos 19 anos, Berlim mudou sua face  e sua posição,
Aquelas ruas longas, magníficas, brilhando de limpeza, as exposi­ções nas lojas, com excelentes produtos, com casas semelhando palácios juntamente com o movimento febril de multidões, tudo isto era para mim uma novidade surpreendente.
As velhas "lipy" recordavam o antigo aspeto, embora ornamen­tadas com lâmpadas elêtricas pendurados em barras de ferro de fabricação prusssiana que ninguém pode tirar.
Tive apenas algumas horas de tempo para, alem da necessidade, munir-me de livros indispensáveis e mapas.  Nao havia nem sequer tempo para visitar Berlim de hoje. Levei apenas uma impressão  artificial percorrendo algumas ruas o que foi suficiente  para confirmar que Berlim - o que alias os alemães propalam com todo o orgulho - mudou para uma verdadeira "Weltstadt".
Às 12 horas, o trem partia para Bremen, havia necessidade de apressar, tanto mais que pretendíamos estar em Paris para a Páscoa e era Quinta-Feira Santa. Seguimos em frente.
0 tempo corria célere como o trem. Havia tanta coisa a conver­sar, tantos projetos a organizar que, nem percebemos a chegada a Bremen as 9 horas da noite.
Ja era tarde demais para fazer qualquer coisa.  Limitamo-nos a colher informações, aqui e acolã, mas superficiais sobre os emi­grantes. De imediato nos  informaram que  ultimamente o número de emigrantes do Reino da Polônia, diminuiu muito. A informação foi unâ­nime e disseram que o último navio que partiu para o Brasil levou apenas umas 30 famílias. Trata-se de emigrantes mais pobres, sem qualquer mêios, para quem o Governo Brasileiro paga a passagem.
6
Os outros que possuem qualquer recurso material, geralmente partem para os Estados Unidos.
Todos a quem interrogamos  a respeito dos emigrantes, geralmente começavam sua resposta com esta apôstrofe: "Ach, die armen Leute!" e a seguir  citavam  uma série de detalhes sobre a desgraça, abandono e falta de qulquer noção destes pobrezinhos. Parece-me que na opinião dos bremenses eles são sinônimos de miséria, pobreza e  vítimas de fácil credulidade. Porisso pude deduzir com segurança e posso dizer que observei mais compaixão do que inclinação para aproveita­mento e exploração.
É fácil concluir que estes detalhes  de forma alguma nos sa­tisfaziam. Decidimos chegar  a fonte mais rica e ao mesmo tempo mais segura que todos unanimenten indicaram nas pessoas dos padres Schlesser e Prahaz, dirigentes da Sociedade São Rafael que tem por finalidade prestar assitência moral e espiritual aos emigrantes.
Essa Sociedade foi fundada em 1872 no Congresso Católico de Mogúncia. Assumiu a Presidência o padre Carlos Isenberg-Bernstein. Ela possui seus elementos nos principais portos da Europa e América, portanto em Hamburgo, Bremen, Antuérpia, Havre, Liverpool, New York, São Paulo, Rio de Janeiro, etc. A sociedade conta com grande numero de sócios e recebe doações consideráveis de pessoas caridosas.
Sua finalidade é demover, com todas as energias, da emigra­ção, se bem que estes esforços mostram-se insuficientes, motivo porque buscam zelar pelos emigrantes, levar-lhes consolo religioso, evitar exploração e servir com conselhos.
            0 homem de confiança em Bremen é o pe.Schlosser a quem foi dado como auxiliar o pe. Prahaz, de Morãvia. Posso chamar o pe. Schlosser de  Anjo Protetor dos emigrantes. Durante 19 anos, desde quando exerce  a função, mais de um milhão dessa gente infeliz passou por sua mão. Chegando a Bremen que se caracteriza por um ódio louco aos católicos, soube capitalizar não só reconhecimento generalizado, mas grangear uma enorme influência.
Os capitães de navios, os funcionários das ferrovias, enfim os proprietários que hospedavam os emigrantes, dependem dele. Ele con­seguiu que nos navios que eram pedras de escândalo e antros de perdi­ção, houvesse mais cuidado no que diz respeito aos bons costumes, distribuindo os emigrantes segundo o sexo (os homens solteiros na proa do navio, os casais na parte central da nau e as mulhes solteiras na popa). - Aconteceu - dizia-me ele,-mais de uma vez que o proprietário a quem visitei, para dialogar com os emigrantes, atirava-me para fo­ra da porta. Atualmente a maioria deles vem tratar comigo para inscrever aqueles sobre quem tenho o direito de controle.
7
Os emigrantes atribuem a ele inúmeros favores que  recebem de varias fontes, nos momentos mais difíceis. Milhares deles com sua ajuda mediação retornaram as suas famílias e milhares de outros bendizem o seu nome por te-los demovido de abandonar o país.
Em cada navio que parte, ele com olhos paternais, verifica se alguém não é alvo de injustiça e depois aconselha  a amar a Deus e  finalmente abençoa os que partem.
Eram 8 horas da manhã quando batemos á porta do Pe. Schlosser. Em poucos instantes depois de trocar mutuas recomendações e mostrando o objetivo de nossa chegada, éramos como velhos amigos e bons conhecidos. 0 Pe. Schlosser tem 51 anos, é dinâmico, de estatura média, cabelos cla­ros, em parte brancos, traços evidentes e curiosamente cativantes. Sua vista fraca é traida pelos óculos. Fala com vivacidade e com uma con­vicção, apresentando coloridamente muitos detalhes de sua rica experiên­cia.
Vi- dizia-nos- muita miséria entre os emigrantes, mas o que encontrei entre os vossos aldeões, ultrapassa tudo. Nenhum deles tem consciência para que esta viajando. Perseguem-nos as mais estravagantes esperanças. Narram os maiores absurdos sobre o Brasil, certamen­te insuflados pelos agentes, aproveitando sua fácil credulidade.. Fiz todos os esforços para mostrar-lhes a verdade. Nada adiantou. O Pe. Prahaz fazia a mesma coisa nos sermões. Nesta oportunidade, murmurando, abandonavam a igreja. As causas, segundo suas afirmações, que os estavam levando para fora do país, como ja me tinha convencido anteriormente e agora es­tou sabendo pelos senhores, geralmente eram falsas. Curiosamente o povo em geral é vitima de mentiras. São muitos sobre quem poderia contar, aqueles que chegaram a mim, pedindo esmolas, ou uma fatia de pão, dizendo que estavam morrendo de fome. Poucos dias depois, esses mesmos trocavam dezenas e centenas de rublos, com os cambistas o que, falando em parêntesis, eu próprio prometi fazer-lhes, temendo que fossem enganados. Em ge­ral, creiam-me senhores, tenho mais pena  da miséria moral do que da ma­terial dessa gente. Quando lhes dava contribuições, caiam aos meus pés, depois quando me encontravam nem sequer cumprimentavam, fingindo não me conhecer. Além do mais, que fraqueza física!. Segundo minha experiência, tanto a velhos, como a crianças, o clima brasileiro  matara... Só os mais jovens se salvarão da vida mesquinha e sobremaneira difícil.
Resumi mentalmente as palavras do Pe. Schlosser que dão as di­mensões quão tristes recordações devia ter  recolhido. Eu próprio tive oportunidade de me convencer deste fato. Soube através do Pe. Schlosser estas coisas e imediatamente comuniquei telefonicamente a "Slowo e Kurier Warszawski", bem como o fato de que o governo brasileiro proibiu receber emigrantes poloneses. Esta notícia também foi recebida pelo "Nordd. Lloyd" que se encontra em gran­de embaraço o que deverá fazer com aqueles que já embarcaram e a quem o governo brasileiro não permitirá desembarcar.  Os, que atualmente se
8
encontram em Bremen não podem mais ser recebidos no convés. Dizem que os motivos da proibição fundamentam-se na sublevação, que em vista da miséria e encanto, os emigrantes poloneses provocaram por duas vezes. Maiores detalhes esperamos para a noite.
Acompanhados do Pe. Schlosser , dirigimo-nos ao Diretor do Lloyd, com a finalidade de acertar o preço da passagem daqueles que retornavam do Brasil. Fomos recebidos pelo Sr. Peters que é uma pessoa muito gentil. Ciênte  de nossa visita, nutriamos esperança de que  o Loyd , por sentimento de humanidade, reduziria os preços, ao mínimo possível. Depois de um curto diálogo ao qual o Sr. Peters aduziu algumas palavras cocncordando com  as seguintes reduções: Pelo transporte do porto de Rio de Janeiro a Bremen: O adulto ao invés de 150 m (marcos) pagará 120 m. Criança de 6 – 12 anos, ao invés de 120 m, para 75 m. Criança de 1 a 7 anos, ao invés de 37½, pagará 30 m. Para menores de 1 ano, gratuitamente.
Alem disso o Lloyd tomou a seu encargo levar aqueles que retornavam até a fronteira (Mlawa ou Alexandrow), em 3a classe, ao preço equiva­lente a 4a.ou seja o preço total de primeira categoria (15 anos -14 marcos e pela metade os preços de 2a e 3a categorias.
Finalmente, para a manutenção cada um recebera 2 marcos.
Naturalmente que era nosso desejo encontrar-se com os emigrantes que neste instante encontravam-se em Bremen. 0 Pe. Schlossser foi retido pelos ofícios da Sexta-Feira Santa, mas o Pe. Prahaz prontificou-se para ser nosso guia. Esse jovem sacerdote sagrado, há alguns  anos, veio para Bremen com a finalidade de  levar lenitivo para os emigrantes eslavos e tchecos. Fala o tcheco e agora familiarizou-se com a língua polonesa, um pouco.É uma nobre alma sob todos os sentidos e um sacerdote totalmente devotado a sua missão. Não poupou sacrifícios, nem trabalho para conscientizar os desnorteados e abrir os olhos daqueles  que eram de fácil credulidade. Infelizmente em vão. Como pagamento por isso encontrou não só indiferença, mas freqüen­temente invenções, ofensas e ate injúrias e calúnias. Com ele fomos a casa de um tal Hess, onde hospedavam-se 34 emigran tes adultos e 18 crianças. Na varanda da casa encontramos  três jovens, como se soube depois, empregados de Lublin. Cigarro nos lábios, fisionomias carregadas, com dificuldade encontravam dialogo conosco. Afirmaram catego­ricamente que não tem nada a perder. Fomos  em frente. Numa grande sala que também servia de refeitório, encontramos os  emigrantes cochilando nos bancos e mesas, o mesmo acontecendo com suas mu­lheres. Nos cantos, no chão, as crianças brincavam e alguns mais velhos jogavam baralho.
Para o simples "Louvado seja", todos se levantaram e nos rodearam. - De onde você é, meu amigo?- perguntei ao aldeão mais próximo, em cuja face  desenhava-se um curioso abatimento.
9
- Ah, de Makowice, de Lipno?
- Como é teu nome? Ali percebi que a mulher, parada a seu lado co­meçou a puxa-lo para o lado.  -Não digo!
- Por que não quer dizer, pois estas vendo quem eu sou. 0 homem começou a cocar a cabeça e a mulher, certamente temendo para que não cedesse, começou a puxa-lo com maior força.
- Isto 5 de menos- disse. Quantas crianças está levando consigo? - Seis e a sétima, se Deus quizer, vai nascer na viagem. -Porque você vai para o Brasil? - Porque outros foram e dizem que lá é melhor.
-     Você estava mal em casa?
-     Bem, sim!  Não se tinha o que por na boca. A gente com esposa qua­se morreu de fome.
Esse proprietário a quem me dirige com perguntas e detalhes, in­formou-me  que aquele coitadinho moribundo, trouxe consigo 200 rs e que com essa importância pagou a manutenção sua e da família, até o dia 10 de abril.  Dai comecei a mostrar-lhe a mentira; não respondeu nada, mas resmungando, retirou-se. Não me dei por vencido. Insisti com a esposa para que retornassem para casa, quanto antes porque ninguém  vai ser embarcado e o Governo Brasileiro não receberá novos emigrantes. 0 Pe. Prahaz, confirmava. Finalmente, o aldeão num polonês arranhado, garan­tiu: "Não, vão partir!". Tudo isto foi em vão.
- Então morreremos aqui, mas não retornaremos para casa! - Esta foi a resposta definitiva.
Dirigi-me a um outro grupo. Ali se encontrava um tal Krupa, guar­da varsoviano da rua Chmielna, juntamente com sua esposa e crianças, já esgotaram os recursos e viviam de esmolas, dadas por outros emigrantes. Assim mesmo rejeitaram a proposta de que lhes dariamos  dinheiro para retornarem e fizeram-no sem a menor reflexão. Um tanto irritado levan­tei a voz : - Como,  deixaram - se iludir de tal  forma, sabendo que estamos viajando para  salvar pelo menos uma  parcela desses coitados que imploram compaixão e vós, apesar disto, partis, às cegas, para a perdição inevi tavel?
- E isso é verdade?, disse um dos mais corajosos. Os demais secun­daram com um sorriso irônico.
Repito que todos sabem que não irão. Ademais o "Lloyd" já os havia informado, esclarecendo que somente pagará durante mais uma semana a hospedagem. Apesar de tudo não acreditam e não querem retornar.
- Se houvesse alguns milhares deles, como em novembro, comentou o padre Prahaz -  os senhores ouviriam a mesma coisa, somente as vezes de forma menos cordial.
10
Não nos restou outra coisa a não ser retirar-se com  dor no co­ração, deixando um parco reforço nas mãos do Pe. Prahaz para os momen­tos de aperto da miséria e quando a realidade cru surgir  diante dos olhos, pudesse despacha-los para casa. A respeito dessses coitadinhos não se pode dizer outra coisa a não ser: -"Senhor perdoai-os porque nao sabem o que fazem!"
Percorrendo varias ruas de Bremen, tivemos oportunidade de conhe­cer, ainda que superficialmente a cidade. Bremen  de hoje possui 100 mil habitantes. Era Sexta-Feira Santa e uma multidão, não olhando  a chuva, nem a neve, movimentava-se pelas ruas, acorrendo ás igrejas, donde fluiam os acordes  do órgão e o canto dos salmos. A população quase exclusivamente protestante oferece um aspeto característico neste dia. Não era uma peregrinação como en­tre nós, cheia de tristeza e dor, repleta de seriedade da multidão que visitava os túmulos do Salvador, mas um cumprimento formalista do ritual protestante - do dever prescrito.
0 novo quarteirão da cidade surgiu perto da estação, conglomeran­do hotéis, casas comerciais e por isso não oferece nenhuma atração e em nada diverge  do  tipo comum de outras cidades alemãs. Aqui localizam-se também as hospedarias onde os emigrantes aguardam os navios do Bra­sil e onde o sonho dourado da felicidade no além-mar sofre as primeiras decepções.
Em contrapartida, a parte velha da cidade e sobremaeira interessan­te e característica. É sabido que Bremen inclui-se entre as cidades mais velhas e conservou as características dos séculos passados até o presen­te. Basta passar os olhos pelas casas esbeltas, com telhados voltados para as ruas estreitas e escuras para imediatamente  perceber  que apenas o moderno verniz cobre pela metade a arte esmagada do passado.
É digna de visita a magnífica catedral gótica, construída ao que se diz, no início do século XI, pelo arcebispo Adalberto, e transformada na metade do século XVI em templo protestante, mas a cada passa lembran­do seu destino anterior. Nao é menos digno de visita o  gótico “Ratusz” de enormes proporções e cuja construção teve início no século XI e que conservou as obras do passado. Graças ao Conselho Local de Bremen es­tá sendo reformado. Diante do Ratusz  esta um gigantesca estatua de Adolfo XIII que se encontra em visível abandono, talvez  com o propósito  para que  o tempo se encarregue de concluir  sua obra destruidora, o que a  mão humana não tem condições de realizar.
Infelizmente o tempo breve, que dispunhamos não permitiu que fossem a Bremerhaven, distente aproximadamente três horas de viagem de Bremen, ali se localiza o porto de onde partem os navios para o alto mar. Não somente os habitantes de Bremen, mas os alemães, orgulham-se do movimento que reina em Bremerhaven, onde os gigantes navios carregam os pro­dutos  da Alemanha para os quatro cantos do mundo. Aqui também o "Nord  Lloyd" possui os seus navios, que ja disputam a primasia com os franceses e ingleses, como os melhores instrumentos de comunicação ultramarítima.
11
Contaram-nos com  grande ufania que recentemente um dos navios do Lloyd cruzou entre New York e Bremerhaven  em 6 dias. Essa viagem  no que diz respeito a velocidade, deve constituir-se em novo nfarco para navegação marítima.
Aproxima-se o momento de nossa partida.
Sob uma impressão deveras triste, abandonamos Bremen. A visão des­tas vitimas infelizes, pasto da maldade  e exploração dos agentes, bem como da  fácil credulidade e burrice dos mesmos. Sua cegueira e teimosia nas esperanças irreais, tem que comover qualquer um» Aat^ tárt/pos s ivel constar quão infrutíferas deveriam ter sido as advertências, ainda que secundadas por argumentos  concretos, uma vez que experimentaram na pró­pria carne mais de uma decepção e enfrentaram a miséria de frente, até agora  continuam sujeitos á ilusão formal da emigração.
Partimos sem nada conseguir, apesar da notícia da proibição do prosseguimento de emigrantes poloneses que foi comunicada não somente por nós, mas pelo Lloyd e também pelos proprietários de hospedarias, aos emigrantes que aguardavam a partida em Bremen.
0 nosso dever estava cumprido, não se deveria perder tempo e pros­seguir a viagem. Ás 4 horas da tarde, acompanhados pelo Pe. Prahaz, embarcamos no trem que nos levaria a Paris, via Colônia.
A chuva e a neve nos faziam constante companhia, tirando a vonta­de de observar a paisagem através dos vidros do vagão.  Somente uma vez tirei a cabeça para fora, na estação  de Münster.  Muitas lembran­ças dos tempos acadêmicos uniam-me a Capital da Westphalia.
Quase   20   anos   apôs,   revi   esta   cidade   querida,   hoje   transformada em novas vestes,  com muitas fábricas, magníficos edifícios, e os imprescindíveis quartéis, existentes nas cidades alemãs de hoje. Como que pondo um ponto final ao mentiroso: "In Münster ist alles finster", aden­tramos na estação ferroviária, totalemnte iluminada eletricamente.
Não sei porque mas aquela antiga, pobre e modesta Münster que vivia em minha mente, tinha mais encanto.
Diante de meus olhos surgiu aquele "team" de oito colegas, uni­do no estrangeiro por laços fratemos, preparando-se com fé  e esperança, para os árduas deveres da vida. Perpassaram pelo pensamento tantas figu­ras para os quais ainda hoje palpitava um sentimento vivo que indepen­dentemente de minha vontade  transportei-me para aqueles tempos.
Desta profunda  meditação (zaduma) foi despertado pelo sino e  pelo sibilante ranger das rodas do comboio. 0 trem seguiu em frente em disparada louca. De tempos a tempos o bruxtocar das luzes, que pe­netravam pelos vidros e um socolejar mais vibrante, atestavam que passávamos por uma estação.
Pela meia noite paramos em Colônia e meia hora depois seguimos para Paris.


12
III
Chegada a Paris. Entrevista com o Sr. Winnicki. Noticias sobre a nossa viagem. Visita ao Sr. Ferrão. Dias santifiçados. "Swiencone" na casa do principe Z.  Conversa com o Sr. Santa  Anna. Audiência com o Núncio. Preparativos para a viagem. Partida de Paris. Caminho para Madrid. Entrada em Lisboa, capital de Portugal.
Não pode existir nada menos encantador do que um dia chuvoso e com neve numa manha de março! As janelas embaçadas do trem, um frio cortante, nuvens carregadas a cobrir o horizonte, o constante cair de gotas da chuva a fustigarem incessantemente os vidros, o barulho das rodas da locomotiva, tudo isto  forma um  ambiente  pouco alegre. E, o que se ha de dizer, quando na alma pululam pensamentos tristes e taci­turnos que levamos de Bremen. Eis, sob  a impressão de um certo abati­mento encontramo-nos na estação férrea de Paris, procurando imediata­mente recolher-se sob o teto do primeiro melhor hotel.
A cidade esta submersa num semi-sono. Pelas ruas seguiam longas filas de carroções carregados; aqui e alhures, como de surpresa, uma caruagem, tirada por uma égua magra, acariciado com o chicote do carrocêiro para apressar o passo. Nas calçadas havia muita gente; o Sábado Santo lançou para as ruas patroas e empregadas a fim de se abastecerem para  os dois dias santos. De tempo a tempo, aparecia uma blusa azul  de empregada ou o guardachuva de funcionário burocrático. 0 co­merciante, semi-sonolento, corria para sua ocupação e no seu encalço um moleque (gawrosz) cantarolando uma música. Diante dos nossos olhos surgia esssa babilônia moderna "hulaszczy e zblazowana", rolando impen­sadamente pelos grandes boulevards, e Paris  operaria e suada que as vezes sorri e mais freqüentemente chora. Limpando os vidros embaçados da caruagem, olhava Paris com certo contentamento.
Finalmente detivemo-nos diante do hotel Dalayrac na rua Mocigny.
Em breves instantes, graças a invenção do nosso patrício Szoberski, pudemos com satisfação aquecer os membros regelados, junto ao pequeno forno de ferro.
Por causa do Sábado Santo não pudemos tomar iniciativa para cuidar dos nossos interesses. Decidimos fazer algumas visidas iprescindíveis  e  revirar as livrarias, buscando material sobre o Brasil. Mal começamos a vasculhar a 1ivraria, apareceu o jornalista, residente em Paris e colaborador dos jornais de Ia, o Sr. José Winnicki.
13
Por seu intermédio soubemos que a noticia sobre nossa viagem chegou a Paris, através da Agência Hawas. 0 Sr. Glinka que sente aversão por tu­do que cheire jornalismo, estava demais embaraçado com a visita, tanto mais que o visitante informou que veio com fins de entrevista. Aos pou­cos a lhaneza do Sr. Winnicki dissipou as prevenções do Sr. Nicolau e tivemos um agradável bate-papo.
Nesta oportunidade  tive conhecimento que nestas rodas o objeti­vo de nossa viagem foi exagerado e deturpado. Em adendo, as cartas de Dygasinski parece que causaram uma forte impressão nas esferas interes­sada com a emigração brasileira o que haveria de dificultar a nossa mo­desta missão. Decidi dirigir-me às pressas ao Sr. Argollo Ferrão, redator do jornal "Brasil", editado em Paris para obter maiores informações e eventualmente pedir-lhe a adequeda retificação nos jornais brasileiros.
0 Sr. Ferrão recebeu mui gentilmente, mas com certo e bem notado descontentamento. Apôs a troca de algumas palavras, abordamos a missão de Dygasinski. Tive que usar muitas palavras e muito tempo para conven­cer o Sr. Argollo Ferrão que o nosso objetivo é totalmente diferente.
- Viajamos, argumentava, exclusivamente com fins cristãos e humani­tários, objetivos estes que deveriam nos garantir apoio por parte do Governo Brasileiro. A nossa misão é: trazer esses infelizes que ao pró­prio Brasil estão se tornando ônus e aos demais, se tivermos sorte de os encontrar, procuraremos  inspirar resignação, consolar e levar à aceitação da sorte.
Parece que os meus  argumentos  encontraram eco  na convicção  do Sr. Redator e começou  a reclamar que  o "odium" da emigração recai sobre o governo brasileiro que esta imbuido das melhores intenções em relação aos emigrantes, somente quando aparecem abusos, estes praticados exclusi­vamente por agentes especuladores da emigração, sobre os quais o governo não consegue ter o  devido controle.  De modo geral , o Sr. Ferrão consi­dera infeliz a idéia de cercar com proteção governamental a emigração. Seria de melhor alvitre que isto fosse feito por companhias particulares, sob rigoroso controle do governo.
- Julgo - acrescentou finalmente - que, quando o gotoerno se conven­cer que estes são os objetivos reais de vossa viagem, não negara apoio, tanto mais que não somente para os vossos patrícios, mas ao próprio governo, podereis oferecer uma valiosa colaboração, desnudando toda a perversida­de dos agentes.
Dentro deste espírito não me omitirei em apresentar a vossa mis­são no meu diário e julgo que isto não ficara sem influência para a vos­sa permanência no pais, onde os jornais começam a acusar a missão, como semelhante a do Dygasinski.
Despedimo-nos no melhor ambiente e como prova disto, o Sr. Ferrão presenteou-me com uma obra em dois volumes: "Le Bresil. Excursion a travers ces 20 provinces", escrito por Alfred Marx, falecido, hã poucos meses e que exerceu as funções de Redator do diário “Brasi”, bem, como foi Vice-Presidente da Sociedade Geográfica-Comercial, em Paris.
14
Saido do encontro com o Sr. Ferrão, casualmente encontrei-me com os dois irmãos Rogoginski, os quais saturados de glória, retorna­vam da Espanha, onde  com grande  reconhecimento foram recebida suas conferências sobre a África. Esse encontro era duplamente agradável e almejado: primeiramente tive oportunidade de abraçar os bravos e in­cansáveis viajantes e em segundo lugar sua rica experiência abria-nos um tesouro de indicações e informações úteis. Neste diálogo instrutivo passamos o resto da noite.
Eis o dia da Páscoa!
Quanto encantamento possui este dia para aqueles que, longe dos seus familiares, tem que vive-lo!  Quase permenanetemente vê-se com os olhos d'alma todos os entes queridos ao coração, reunidos em volta do ovo pascal, ouve-se cada voz que apresenta seus votos, sente-se o aperto da mão amiga e tem-se vontade de gritar a todo vapor: -Eis  que eu também estou convosco!
Infelizmente a voz é sufocada no peito e o coração  é subjugado pelo sentimento de saudade. Sob esta impressão, juntamente com o sr. Glinka, dirigimo-nos a igrejinha de L'Assomption, na rua St. Honore, onde tinha permissão para celebrar a Santa Missa. Apenas algumas pessoas reuniram-se. Paris neste horário parace que ainda não reza. Afinal a chuva deve ter reti­do em casa muitos devotos novos. 0 silêncio e a paz dominavam a Casa de Deus, permitindo que as nossas preces  com maior liberdade fluissem ao trono do Eterno Senhor, sob cuja proteção paternal nos entrega­mos, bem como aos nossos.
Para a Ceia Pascal fomos à residência do Príncipe Z. Ali encontramos um numeroso grupo, composto em maior parte por poloneses que per­manentemente residem em Paris. Conhecemos o famoso oculista Dr. Galezowski a quem incluo entre estas figuras  cativantes, com  quem apôs alguns minutos de conversação ja se é um bom amogo. Como é obvio, o prin­cipal tema da conversa era a nossa viagem.  Nesta ocasião foi-nos formu­lada uma pergunta sobremodo original e característica: Uma das damas presentes que ainda não conseguiu sair de Paris, onde julga mais apropriado passar o inverno, aproximou-se com sorriso cordial e disse: - Então os senhores vivem permanentemente no Brasil?
- Ainda não - respondi com sarcasmo -  mas em compensação, viajamos para fazer retornar esta parcela irresponsável que existe para o além mar, buscar melhor sorte e encontrara a  mais lamentável desgraça.
Não há necessidade de falar que existem damas que sabem perfeitamente o que acontece em nossa Pátria! Sob este prisma, parece que em certas esferas não houve nenhuma mudança para melhor.
15
Permanecemos por bons momentos na casa do príncipe Z. Depois fui á residência do Sr. Mick. e com ele fomos visitar  Ladislau Gorski. De fato, encontrei-me entre bons amigos, trocando idéias sobre nossos amigos e conhecidos comuns, rememorando momentos que junto passamos, em Varsóvia e não nos percebemos quando fomos supreendidos (zmierzch). Presente naquele instante Paderewski ofereceu-nos um banquete verdadei­ramente principesco. Sentou-se ao piano e tocou... e como tocou... Não surpreende porque Paris, anda perdendo a cabeça por ele. Nunca vi tan­ta poesia quando ele tocou. Foram sem dúvida os momentos mais lindos da minha viagem.
Graças a bondade do excelente jornalista Sr. Winnicki, mantivemos contactos com o Sr. Santa Anna Nerry. Ele exerce as funções de Secretário da Representação da Ministério da Agricultura, da qual é chefe o Sr. Prado,  esse mesmo Prado que  o Sr. Waliszewski dedi­cou uma longa correspondência no "Kraj" e o qual segundo consta foi Ministro da Agricultura no Brasil.
0 Sr. Nerry, alem disso, é o presidente do Sindicato dos Jor­nalistas Estrangeiros em Paris e finalmente o correspondente do diário mais lido e mais influênte do Rio de Janeiro, "Jornal do Comercio". Cientes da falsa versão de nossa viagem que certamente nos antecederá em nossa vinda ao Brasil, é fácil concluir quão grande interesse tínhamos para conseguir a retificação da versão por intermédio do Sr. Nerry.
Na entrada qual espeto a sair do saco, retirava-se o sr. Dygasinski. Foi necessário repetir o mesmo que dissemos ao sr. Ferrão a respeito do objetivo de nossa viagem.
- Estamos em sua presença – acrescentamos - exatamento por isso para que na qualidade de consciencioso e influente jornalista fizesse a opinião pública sair do erro em que labora.  Pelo menos no Rio de Janeiro contenham - se de nos julgar, antes que se convençam com os pró­prios olhos com que objetivo estamos chegando e em que círculo desenvolvemos nossa atividade. Em nossa opinião não há nada mais perigoso do que o emigrante decepcionado em suas esperanças, inadequado para as condi­ções locais.  Certamente repatriar um destes talvez será  um beneficio para o pais.  Não temos nenhuma prevenção. Ao contrário, acreditamos nas boas intenções do governo brasileiro, mas será que ele próprio não está sendo explorado e roubado  pelos especuladores ávidos de lucros?
Quantas informações e detalhes valiosos poderemos fornecer! Não temos nem forças, nem influência para deter a emigração, mas desde que consigamos somente isto que cada emigrante saiba o que de fato o espera  e ao governo deixar desembarcar em terras brasileiras, bandos de carneiros desnorteados, iludidos com promessas falsas, isto será uma contri­buição para o nosso e vosso pais.
0 Sr. Nerry deu-nos razão e acrescentou que  o Governo  brasi­leiro ao saber dos abusos dos agentes e dos manifestos mentirosos por
16
por eles espalhados, etc. determinou a realização de uma pesquisa que infelizmente não chegou a nenhum resultado, porque não foi apresenta­do nenhum documento que  comprovasse ação perversa dos agentes. Explicamos que os nossos aldeões em sua maioria não sabem ler e por is­so agitação era feita verbalmente. Todavia existem inúmeras infor­mações, cartazes e outros engodos, através dos quais espalham no meio do povo varias lendas sobre o Brasil e sobre a felicidade que lá aguardava os emigrantes. 0 Sr. Nerry não escondeu que em vista das acusações encontraremos muitas dificuldades levantadas.na imprensa européia. Sem dúvida – acrescentou - devagar os senhores poderão desfazer as suspeitas. Isso todavia dependera dos senhores.
Finalmente o Sr. Nerry forneceu-nos cartas de recomendação para algumas personalidades influentes no Rio de Janeiro e prometeu enviar imediatamente, correspondência ao "Comercio", na qual mostrara  o ver­dadeiro objetivo de nossa viagem. Fomos alvos de uma lembrança, em for­ma de livro: "Le Bresil en 1889", escrito  por quem nos presentea­va .
Não tinhamos motivos para duvidar que o Sr. Nerry irá desinncumbir-se da promessa. Causou-nos boa impressão sob todos os aspectos.
Comecei a ter uma uma séria convicção de que, de modo geral, o Governo Brasileiro diretamente não influencia o nefasto alicia­mento dos emigrantes. Sua culpa reside somente no fato de ter esti­mulado os agentes com prêmios pela quantidade de emigrantes fornecidos, atiçando desta forma  sua avidez de lucro e neste relacionamento não possui sobre eles o necessário controle para coibir os abusos.
A literatura francesa não e muito rica em obras que tratam sobre o Brasil. Por isso as visitas as livrarias não trouxeram resultados po­sitivos. Além dos livros de que me havia munido e aqueles que recebi em presente, não encontrei nada interessante. Levei apenas Ernest Michel "A traves L'hemisphére Sud" onde há alguns capítulos dedicados ao Bra­sil. Querendo saber algo mais sólido sobre a situação do Brasil, cada um é condenado a própria observação e pesquisa árdua.
As obras escritas por brasileiros, geralmente pecam pela unilateralidade e com freqüência, direta ou indiretamente, estão interessadas na emigração e em conseqüência apresentam tudo como mar de rosas. Outros autores, por seu turno limitam-se a impressões de viagem, enquanto a si­tuação econômica, social e ate política é tratado superficialmente. Por isso todos os apontamentes, mesmo os escritos por pena menos hábil, tem seu valor como material inédito, onde podem ser coletados detalhes interessantos que faltam em obras que tem a pretençao de sérias. A este fato deve ser atribuída a falta que temos na Europa de notícias sobre o Brasil, e freqüentemente formamos sobre o país uma imagem sim­plesmente ilusória diante da realidade.
Em relação aos mapas geográficos a pobreza ainda e maior. Em Ber­lim e Paris encontrei apenas alguns pequenos e inteiramente inexatos.
17
Fui alertado que no Rio de Janeiro não serei mais feliz sob este prisma, pois nem o escritório d.a colonizarão, possui alguma coisa melhor. Não é de admirar, afinal, pois em vista da imensidão territorial, atualmente ainda despovoado e selvagem, qase não existam mapas  exatos. Recenetemente foi organizada uma grande sociedade francesa, com capital, segundo se propa­la de 3 milhões de francos que entre outras, fixou a meta de organizar, mediante método fotográfico, um mapa do Brasil  com detalhes e exatidão. Um dos colaboradores desta sociedade é o varsoviano, sr. Komierowski que com esse objetivo foi enviado ao Rio e certamente de lá iniciara a pere­grinação pela provincia. Esse trabalho cansativo e repleto de duficuldades será concluido num prazo de 6 a 8 anos. No momento e forçoso ser­vir-se daquilo que existe.
Restaram os preparativos da viagem.
0 clima tropical exige muitos preventivos e cuidados. Antes de tudo deve-se olhar para as roupas. A forte transpiraçao, provocada  pelo calor do trópico, expõe para um resfriado fácil ao menor sopro  de vento mais fresco. Munidos de roupas mais leves, não descuramos, aconselhados pelos irmãos Rogozinski, de comprar conjuntos de flanelas e algodão. Era necesário cuidar de proteção para a cabeça contra o calor solar. 0 guarda-sol nem sempre é o mais pratico, como muito mais eficiente foi-nos reco­mendado o Kepi inglês. A nossa chegada ao Brasil era prevista para a tem­porada das chuvas, e como constavam  viagens mais longas para a Provín­cia e, segundo fomos alertados a maior parte das viagens devera ser feita a cavalo, por isso compramos capas de borracha e o  indispensavel filtro para água. As viagens anuais para os alagadiços poloneses, mostraram-me a necesidade deste utensílio, pois é somente possível dessedentar os lábios com água suja e barrenta. Finalmente  abastecemo-nos com medicamentes, uma boa porção de quinino, sal amargo, uma pequena farmá­cia de viagem, esta  graças a família K, com remédios indispensáveis. Com isto pudemos imediatamente socorrer a todos os amigos que porventura necessiatssem. Como o já falecido Stanczyk comprovou cada  um se considera o melhor medico, por isso  tributando essa obrigação um ao outro, julgamo-nos armados dos pes a cabeça contra a doença. Foi preciso decidir que linha nos transportaria pelo Atlântico  ao Brasil.
A viagem marítima, pelo menos para mim, não tinha a menor atração e a experiência tida até o presente, mandava aguardar no caminho marítimo muitos contratempos. Por isso decidimos ir por terra até o ponto mais longínquo, até o porto final da Europa e somente lá  embarcar no navio.
Quase todos os navios, excluídos os italianos, espanhóis e os que partem de Marselha, detem-se em Lisboa. Entre os navios das compa­nhias  que por aqui navegam, ingleses, portugueses e espanhóis, recomen­daram-nos especialmente os ultimos: "Messageries Maritimes", com sede em Bordeaux, com os mais confortáveis e seguros.
18
Essa  companhia faz singrar 5 enormes  barcos passageiros: "Plata e Brésil" com a força de 5.400 HP, "Portugal" com 4.800 "Equateur" com 2.900 e "Orenoque" - com 2.000. Partem de Boredaux no dia 5 , detem-se em Lisboa e Dakar e no dia 20 de cada mês lançam âncoras na Bahia e Pernambuco. No dia 5 devia partir de Bordeaux o navio "Bresil" e no dia 8 zarparia de Lis­boa. Apôs gequena reflexão decidimos aproveitar a oportunidade e rea­lizar a nossa viagem com este navio. Fomos ate a administração central da Companhia "Messegeris Maritimes", na rua Vignon. Nr. 1 onde cada um de nós recebeu a passagem pelo preço de 1.275 francos. A passagem era de 1ª Classe e  dava direito a retorno, dentro de um ano. Destinaram - nos uma cabine para duas pessoas de números 7 e 8.
Todos os preparativos estavam concluidos e nada mais restava a fazer, senão partir.
Na quarta-feira, dia 2 de abril, as 20 horas deixamos Paris na Es­tação de Orleans, em direção de Madrid, por onde o caminho levava a Lisboa.
Infelizmente a noite impediu que contemplássemos as ricas regiões entre Paris e Boreaux. A partir dali o caminho começa a ficar menos interessante. Durante algumas horas o trem corre pela  pobre "Landes" e os olhos, com tristeza, tem que contemplar os intermináveis banhados. De tempos a tempos vê-se um mato de pinheirotes, árvores pequenas e raquíticas que atestam claramente a pobreza da terra em que medram. Os proprietários dessas nesgas de mato encontram um meio original, embora com pouco lucro. Debaixo de cada árvore encontra-se um vaso para  os quais cai em gotas a resina. Consta que desta fonte despencam para os bolsos dos proprietário alguns e as vezes muitos milhares de francos anualmente e isto  prossegue até que as árvores se tornem aptas para o corte.
Sentia-se no ar a primavera que despertava. Em verdade o inverno ainda não tinha desaparecido totalmente, mas aqui e acolá ja se via capim verde, enquanto alguns ramos de cerejeiras cobriam-se com as flo­res de inverno, antes que das borbulhas  desabrochassem as folhas.
Quanto mais nos aproximávamos da fronteira, a região tornava-se mais pobre. Ao invés de banhados e mato, via-se até onde a vista alcan­çava, pedras desnudas, por meio das quais, de espaço em espaço despon­tava um raquítico e mirrado pé de oliveira. Eram raros os campos férteis  no caminho dos trilhos, raramente viam-se pequenos vinhedos, pois a locomotiva  penetrava em rochas e nada mais havia para contem­plar a não ser pedras e  oliveiras.
Em Irun atravessamos a fronteira espanhola. Desfraldou-se to­tal probreza da paisagem, diante de nós. Aqui e acolá  encontravam-se miseráveis tendas de pastores e pequenos rebanhos de ovelhas pretas. São os únicos sinais de seres vivos nestas paragens inóspitas. 0 pássa­ro raramente corta os ares.
19
Ao contemplar isto, a gente se perguntava:  De que esta gente pobre  pode e tem que viver?
Entrementes o sol descambava para o ocaso, derramendo uma luz avermelhada sobre os Pirineus. Finalmente a noite escura nos envolveu, den­tro da qual somente o ranger das rodas era mais forte, anunciando que atravessávamos  túneis e pontes. 0 sono. Companheiro inseparável do cansaço, cerrou os  cílios vagarosamente.
Com os primeiros indícios da aurora, despertamos em meio a areia amarela que cerca a Capital da Espanha. Não me alongarei sobre Madrid; quem não a conhece de várias descrições?  A cidade não me causou especial impressão. Suas ruas são sujas e estreitas e nelas uma multidão que vai e vem. Chegamos na vés­pera de touradas. Tudo vivia e respirava  com apenas um desejo: ver es­ses monstruosos torneios. Nas ruas agitavam-se  vendedores de entradas e programas que a todo vapor gritavam, procurando impor-se ao público.
Em Puerta dei Sol, uma praça central  da cidade, onde se localizava o nosso hotel reinava agitação e barulho indiscritíveis. A confusão penetrava  ao quarto através das janelas e  permanêcia nos ouvidos por largo tempo.
As igrejas madrilenhas do ponto de vista arquitetônico não apre­sentam nada de original.Visitamos, entre outras, a recentemente restau­rada, San Francisco el Grande que é uma espécie de Panteon Nacional, onde repousam os restos mortais e acham-se os  bustos dos grandes vul­tos espanhóis. A igreja foi construida em forma de Rotunda e brilha  em ostentação. As paredes são  recobertas de enormes afrescos, mostrando os principais episódios da vida de São Francisco, bem como os  mais im­portantes acontecimentos da história da Espanha. A sacristia e extraordinária, toda talhada em madeira. Nos corre­dores que conduzem a ela acham expostas fotos de reis e personalidades. Apesar do brilho e ostentação, a igreja como um todo não causa impres­são de um  templo sério.
Dentre outras construções menciono o Museu Real - "Real Museo" - que possui uma das mais ricas galerias do mundo. As escolas italiana e flamenga estão muito bem representadas. Ê conhecida a posição  notável da pintura espanhola na arte moderna; o museu madrileno possui as me­lhores obras de arte dos atuais  mestres. 0 próprio prédio pertence aos mais bonitos de Madrid.
0 palácio real e uma construção pesada e sem estilo que chama so­bre si a atenção, não pelas formas, mas antes pela  tamanho. Alguns palácios particulares, existentes em várias ruas, ou as vilas junto Es aleias, não oferecem nada que mereça deter por mais tempo a nossa a vis­ta.
São belas as aléias localizadas na zona sul da capital, bem come o enorme jardim botânico, onde em domingos e dias santos, a aristocra­cia de Madrid realiza excelente "corso".
20
   Centenas de   caruagens ser penteiam pelas aleias, deslumbrando a multidão milionária a pé, contem­plava a riqueza de trajes e a exposição da  arreamentos.
Não conheço outras cidades espanholas, mas foi-me assegurado que Madrid  pertence  as menos interessantes.
Infelizmente a brevidade de tempo não permitiu passeios pela região que  na parte sul é  especialmente encantadora. Após 36 horas  de repouso, no dia 5 de abril, partimos para Lisboa, levando  ainda longe o barulho e borborinho da Capital espanhola.
0 nascer do sol abriu diante de nós quase a mesma paisagem que existe entre Irun e Madrid. 0 panorama é igualmente taciturno e pobre. Embora estivéssemos viajando pelo chamado "Sud-Express", o trem em vista das curvas, avançava vagarosamente por entre montanhas.
0 nosso grupo não era numeroso mas em compensação bastante original. Não  se  separava de nós um par de alemães, pai e filho, frabricantes de sabão em Darmstad. Ambos realizavam a conhecida "Vergnügungreise". 0 filho não era  somente o caixa, mas a memória e a imaginação estética do pai que a cada passo voltava-se  a ele com o típico: "Nun, Heinrich, erzähle mal, wie war's in..." Então, Heinrich emprestando da Bädecker, contava detalhes que as vezes interrompia para encantamento paterno com: "Nein, wie schön!"
Um português fazia contraste com os dois alemães, comprador de vinho, residente em Bordeaux. Entretinha-nos com histórias fantásti­cas sobre suas peripécias e relações. Uma vez quase afogou-se realizando passeio com seu vapor. Doutra feita tomou parte  em touradas a cavalo cujo torneio realizava-se em Lisboa em homenagem ao Rei. Viajou pelo mundo inteiro, em toda parte deixando amigos, entre as maiores autori­dades às quais  presenteava, em troca, com seus vinhos, por preços lendariamente baixos e que   aconselhava a nós que  aproveitássemos. Se quizessemos calcular seus movimentos comerciais, atingiriam não soment milhares, mas milhões. Numa palavra era um tipo acabado de mentiroso. Só a menção de que estamos viajando para o Brasil, começou a contar-nos a respeito de Dom Pedro que é seu amigo e  recenetemente o havia visitado em Cannes e que lhe garantiu solenemente, que nunca mais pretende retornar ao país ingrato. É pena que já não se encontre no Rio, pois teria nos recomenda-do encarecidamente. Os alemaães  boquiabertos escutavam  as  mentiras.
O restante da companhia constituía um senhor muito sério, que o perspicaz Sr. Nícolau pressentiu que se tratava de um diplomata. Constatou-se posteriormente ser  cônsul argentino em Viena, que se dirigia para embarcar no "Brasil", com destino a Buenos Aires. Quanto  português não fechava a boca, o sr. cônsul  nunca a abria.
Finalmente, viajava  um engenheiro francês, com sua esposa e filinha
retornando ao Brasil depois de permanecer durante cinco anos na Europa. Vinha  para chefiar osfctrabalhos da nova estrada de ferro.
Enquanto isso o trem cortava caminhos   ladeados por aloes, formando uma cerca original de ambos os lados dos trilhos.
21

Cerca das 11 horas adentramos  as fronteiras portuguesas. A paisagem começou a mudar aos poucos. Desaparecem as  rochas desnudas e  imperceptíveis  espaços de pedras e em compensação cercaram-nos campos verdejantes.  De  tempos a tempos viam-se  pomares de laranjeiras, do meio dos quais  surgia o telhado vermelho da casa do colono. Ali e acolá  alvejavam a distância maiores propriedades e cidadezinhas e o sol alegremente  penetrava pelos vidros dentro dos vagões. Ja era necessário, mais de uma vez tapar o sol com as mãos, para poder  apreciar a região sorridente, enquanto o calor  sulino começou a   fustigar-nos a valer. Uma hora antes de Lisboa, o trem  corria desolado direito do Tejo que, qual  enorme  faixa  cinzenta perdia-se de vista  no espaço. Navios maiores e menores singravam pela possante rio e um bando de gaivotas  planavam no ar .
Ás quatro horas, finalmente,  encontramo-nos em Lisboa. A cidade em seu bairro que vizinha com  a estação, não apresenta nada de interessante. Ruas pejadas de sujeira, casas pequenas e abandonadas e a multidão que  flui não apresenta maior atrativo pelo seu exterior. Quanto mais se a adentra o centro da cidade. Com tanto maior  interesse à vista  detem-se sobre  diversas coisas. Principalmente a sinuosidade do terreno chama a atenção sobre o qual   se instalou a cidade. Em algumas ruas, formalmente é necessário fazer uma escalada. Em outros lugares uma carruagem desce das alturas que ordena admirar a esperteza do carroceiro e a firmeza das pa­tas do cavalo. Casas lindas, lojas a brilhar com as exposições; de tempo a tempo um edifício imponente ou uma igreja; tudo isto passa diante dos olhos, causando uma impressão  favorável a Capital de Portugal.
Hospedamo-nos no hotel Bragaza do qual se desvenda uma vista linda sobre o Tejo e região. Veem-se enormes navios, com âncoras lançadas, pequenos vapores a rasgarem com velocidade de flecha   as ondas e pequenos barcos que movimentam-se pelo leito do rio.
Foi anunciada para o dia seguinte a vinda do "Bresil", portanto tivemos tempo de  visitar a cidade.
Lisboa atualmente conta com 300.000 habitantes é localizada numa área de mais de 12 quilômetros por sobre as serras, formando o lado direito do Tejo. A cidade do lado do rio apresenta uma vista magnífica, lembrando Napolis ou Gênova, especialmente a noite, quando as ruas e as casas sao iluminadas por milhares de luzes. Os portugueses também se orgulham de sua Capital e com satisfação  mostram as belezas aos visitantes.
Os únicos nossos passos dirigiram-se, naturalmente, ao correio onde nós deveriam aguardar cartas de Varsóvia. Mal entramos na praça enor­me praça do Comêrcio, quando fomos surpreendidos por um  barulho desnaturado que vinha  de uma rua adjacente. De repente saíram correndo duas carruagens, ermeticamente fechadas, cercadas de uma forte  escolta de cava­laria, bem como  cerca de 100 soldados a correrem e gritarem a todo va­por.  Mal nos afastamos para o lado, quando todo esse  inusitado e barulhenta caravana, passou rente a nós.
            22
Fomos esclarecidos posteriormente que neste momento o supremo  tribunal confirmou o julgamento  de Guerra, condenando à deportação, os causadores da Revolução do Porto. Estavam sendo escoltados para o navio de guerra que deveria partir com eles para uma das colônias portuguesas. No dia seguinte  surgiram nos jornais, ar­tigos alti-sonantes sob o titulo "Grande demonstração Republicana", descrevendo com exagero aquela ovação dos soldados das ruas lisboanas da  qual, sem querer, fomos tes temunhas. Soube posteriormente que a imprensa da capital, defende  preferencialmente os ideais democráticos, em sua liber­dade não conhece  limites, o  povo, por seu turno, ainda que não goste do seu rei por causa de sua descendência alemã e cemportamento drástico e prussiano, é indiferente aos problemas políticos e principalmente desejosa de  paz e  boa situação das finanças gravemente esfranga-lhadas. Goza de grande popularidade a jovem rainha, filha do príncipe Paris que com sua bondade e beneficência , em pouco tempo grangeou sim­patia dos portugueses e amenizou, compensando a severidade do marido.
Volto ainda para a Praça do Conêrcio. É uma praça inteiramente abert para o lado do rio e os outros três lados são ladeados por belíssimos edifícios de todos os ministérios para os quais, há muito tempo foi esco­lhida ali a sua sede. No centro ergue-se a gigantesca estátua de José I, mon­tado em cavalo, para uma das ruas laterais  conduz  um magnífico arco de triunfo, coberto de inscrições e emblemas das conquistas bélicas.
Se a sorte levar alguém até a Lisboa, aconselho que faça um passeio pela "Avenida da Liberdade", larga, ornamentada com árvores exóticas, onde se localizam os mais belos palácios e casas. É o lugar preferido pelos lis­boetas para passeios. No centro da avenida, em meio a  palmeiras frondosas ergue-se em forma de pirâmide a estatua da 1iberdade. São dignos  de contem­plação os jardins, São Pedro d'Alcantara e Estrella, situados nos cumes de montanhas, de onde  descortina-se um encantador panorama para a cidade e para o rio. Num dia  claro pode-se ver  de lá até o oceano.
Das igrejas que Lisboa conta mais de 60, o primeiro lugar ocupa a Catedral, Sé Patriarcal. É uma dos mais antigos templos   da Capital em estilo gótico. Infelizmente apertada entre casas, mostra apenas sua  linda fachada, com as torres ainda inacabadas. 0 interior igualmente  gótico, não apresenta nada especial.
Merece  atenção  a igreja de São Roque, em estilo Romano, situada no local do mesmo nomej o Santuário Estrella.
0 palácio real, construido no ponto mais elevado, impõe-se soment pelo tamanho. A outra moradia  real, entretanto, localizada na encantadora Cintra, distante 27 quilômetros de Lisboa e sob todos os ângulos  recorda os mais lindos locais  da Suiça é igualmente quanto ao estilo e localiza­ção  cativante. Dentre os bairros, o primeiro lugar  cabe a Belém, com o antigo castelo, guardando da torre fantástica, o Tejo, bem como o mosteiro que tanto sob o prisma da arquitetura externa gótica, quanto a ornamentação interna, faz parte das melhores construções de Lisboa.

23
De modo geral, a capital portuguesa, incontestavelmente pode ser incluída entre as mais  curiosas  cidades da Europa. Encanta especialmente o  panorama mirabolante que  satisfazem a vista plenamente. Apesar disto Lisboa é a cidade menos visitada pelibos turistas. Em parte o motivo  é a situação geográfica de Portugal, que fica  no escanteio da Europa., bem co­mo os parcos meios de comunicação. Capitalmente afasta  o estrangeiro a inapelavel exploração que se encontra exposto a cada passo.
Eis  por exemplo, cumprindo desejos da administração de "Messageries Maritimes", mandamos os nossos passaportes para o visto da polícia. Qual nao foi nossa surpresa quando, por essa pequena formalidade, exigiram um pa­gamento em torno 5 milreis, ou seja mais de 20 francos por pessoa. Lembro que o milreis português vale o dobro do brasileiro. Os preços dos hotéis são igualmente exagerados, começam por 4 milreis diários. Não cuidam nada do con­forto nem facilitam aos ádvenas. Com o argumento podem servir as insuportáveis formalidades de quarentena; se alguém não é obrigado a desembarcar em Lisboa, exigem que desembarque noutra cidade. Há algumas dezenas de  anos a Capital de Portugal, foi acometida de febre amarela. A partir dali, mesmo que não se registrou nenhum caso desta peste, os meios  preventivos, exigidos na época para os que vinham  nos navios do sul, permanecem até hoje. A municipalidade construiu naquela época, na outra margem do Tejo, com grandes sacrifícios um gigantesco hospital para aqueles que tem que passar a quarentena. Sem olhar se o navio tem doentes a bordo, ou se os tinha no de­curso da viagem, ou não, todo passageiro, vindo de regiões passíveis de con­taminação com a febre e  submetido a 2,4,8 e mais dias de quarentena. Esse cuidado, em verdade é simplesmente absurdo, pois esse mesmo passageiro,18 horas mais mais tarde, pode desembarcar em Vigo,ou 28 horas apôs em Bor-deaux e, em dois ou três dias, encontrar-se  por terra em Lisboa.Um único motivo para manter esse oneroso cuidado consiste no fato de que em caso contrário o hospital  ficaria vazio e  não cairia na caixa municipal, 20 francos diários por pessoa, condenada a fazer a quarentena. Foi-me garantido que os passageiros da 3a classe que a municipalidade é obrigada a sustentar em determinado momento por sua conta, as autoridades sanitárias não são nada rigorosas e quanto antes  expelem-nos dos navios para a terra firme. E se é alguém, são eles precisamente, em vista da sujeira reinante nesta parte do navio, podem trazer a doença com maior facilidade. Não há que estranhar que nestas condições quem pode, evita Lisboa, não querendo expor-se a exploração ou  esperar o fim  desse  enojado e dispendioso  prazo da quarentena. È uma pena, porque Lisboa e digna de ser visitada.
Tivemos várias cartas de recomendação para pessoas residentes em Lisboa. 0 tempo, lastimavelmente, não permitiu que  as aproveitássemos. Limitamo-nos a visitar  a família Jarosz, onde fomos recebidos de braços abertos. 0 sr. Jarosz até pouco tempo era cônsul  da Alemanha e sua senhora é polonêsa
24
com grandes relações de amizade e familiares no Reino, Galícia e Poznan. Ambos são sobremodo  gentis  e como já moram, há 20 anos em Lisboa, conhe­cem perfeitamente a situação, por isso a conversação era agradável, útil e instrutiva.
Retornando ao hotel, vimos pela janela o nosso "Bresil" ancorado. Foi cercado por um enxame de pequenos barcos que lembravam  pintainhos a pipilar junto da mãe cacarejante.
Chegou o momento em que deviamos dizer adeus a Europa por longo tempo para conhecer uma nova parte do mundo, misteriosa, desconhecida e que só nós atraia pela desgraça dos nossos impensantes e crédulos patrícios. Junto a janela, os meus pensamentos  vagavam  sem a minha vontade junto aos meus para leva-los consigo na mente e no coração para o alem-mar. No dia 8, as 12 horas, o navio deveria zarpar para o alto mar.
25
IV
DIÁRIO DO NAVIO
            8 de abri1.
Já nos encontramos no navio!
Concluidos os últimos preparativos de viagem, lá pelo meio dia to­mamos um barco que nos levou ao "Bresil" que se achava um quilômetro dis­tante  da terra.
Na feira reina um movimento incomum, pois a partida de um navio da "Messegeris Maritimes" constitui um acontecimento  fora  de serie. Não só os passageiros, seus familiares amigos, mas comerciantes, agentes comissários, etc. são bastante interessados. De várias partes acorrem bar­cos, trazendo passageiros e suas bagagens e muitos interessados e tudo isto dirige-se para o gigante, que respira  pesadamente, como a experi­mentar suas forças  para a longa luta com o mar.
Pequenos vapores puxam  chatas (gabary), carregadas de carvão e outras mercadorias que o "Bresil" deve transportar para  outra parte do globo. Sopra um vento forte do sul, em vista do que as ondas revoltas do rio castigam impiedosamente  a nossa fraca casquinha.
Viaja conosco um agente ciceroneando um cidadão inglês. Digige-se a Buenos Aires para salvar o que ainda for possivel  da derrocada argenti­na. Visitou o mundo inteiro. Esteve ate na Rússia, fato que lhe possibilitou aprender algumas palavras russas. Até  alcançarmos o navio conseguiu contar-nos a história de sua vida quase integralmente.
Enquanto isto atingimos o objetivo.
0 "Bresil" é imponente. Em cima da água, acima de dois pavimento eleva-se  o gigantesco casco, com 155 metros de comprimento e o resto, 27 pes, segundo demonstram  os números da proa, perde-se nas ondas que fustigam seus costados pretos. Novelos de nuvens pretas eram expelidos pelos dois chaminés e três fendas laterais, em rios escorre a água já utilizada pela maquina. 0 gigante com duas fileiras de janelas arredon­dadas, brilhando  à luz fosca do sol, quais  olhos de monstro, a perde­rem-se longe no horizonte infindável, permitindo que  seu dorso fosse carregado de gente e mercadorias. A agitação e a pressa no conves chegam até nós lá embaixo com um eco surdo, mesclando-se  como borbulhar da água que   bate no dorso do navio.
Notaram a nossa presença.
Um breve apito da cometa e o elevador  levou os nossos pertences, num abrir e fechar de olhos, enquanto nós com  pastas na mão galgamos vagarosamen t e a escada que nos leva ate o convés.
Na chegada somos cumprimentados por uma multidão de curiosos, medin­do dos pes à cabeça os novos companheiros de viagem. 
26
Entregamos as nossas bagagens ao marinheiro que estava de plantão que com um movimento automático da mão apresenta-nos ao supervisor do navio, acrescentando por entre dentes: "sept  et ouit!" "souviez messieurs!" que soam como comando deste bem bardeado senhor.  Dirigimo-nos, por meio da multidão de passageiros e mari nheiros, descendo por escadas estreitas ao interior  do navio; prosseguimos por um corredor longo e iluminado por lâmpadas eletricas. Dos dois lados vem-se os números das cabines, semelhantes a gaio­las. 0  tapete  do chão, sufoca os passos, oferecendo a nossa  quieta  tra­vessia um ar de mistério. Damos alguns passos a esquerda. 0 nosso guia abre  com chave uma portinhola, descortina  o pano escuro e  dirigè-se a nos com a caracterista gentilize:  “Voilay messieur votre cabine!”e retira-se deixando-nos a sós.
Estamos em casa. Aqui, nesta pequena gaiola de 3 braças e meio de largura e outro tanto de comprimento, deveremos passar 14 noites. Observamos aquela residência em miniatura.
De ambos os lados   acham-se duas  camas estreitas, entre  elas uma pequeno lavabo, juntamente com espelho. As paredes são pintadas de branco. Uma janela  redonda, fixa por  uma grande moldura de ferro e mó­vel, abre vistas para o mar. No centro do teto, acha-se aninhada  uma lâm­pada elétrica envolta por um vidro cor de leite que com o apertar do botão junto à uma das camas,  envolve a nossa cabine com à luz  suave. Em toda parte reina ordem e limpeza exemplares.
Arrumados mais ou menos os nossos pertences, retornamos ao convés. Desta feita atravessamos o salão de refeições, para o qual dá acesso um larga escada com corrimões de madeira de lei. Ocupa  ele uma quarta parte de todo o convés e é decorado com  ostentação. Junto ás paredes forradas, acham confortáveis sofás. No espaço entre as janelas estão afixadas be­las vistas; certamente elas tem a função de  lembrar no decurso da viagen marítima, a terra, perdida longe de vista. No centro do salão acha-se um balcão grande de “mahon”  e o resto  do espaço é ocupado por mesas enfileiraidas para 6,8 e 12 pessoas, rodeadas de cadeiras estofadas e  fixas. Do teto pendem  lustres elétricos. Provavelmente o mar estará revolto por­
que nas mesas estenderam os chamados "violinos", isto é cordas fixas em taboinhas para segurar os copos e garrafas em caso de balouçar do navio È hora do lanche.
Aqui e acolá assentaram-se grupos de passageiros para comer sopa de carne e verduras, assados, bacalhau e vinho. Aproxima-se de nos um garçom de jaqueta marron e convida assentar à mesa. Agradecemos, preferindo a cerimonia da partida.
A gigantesca sirene soou duas vezes. É o primeiro sinal. Os barcos  com marinheiros continuam à chegar ( Maruder-soldado que se separou da tropa, geralmente com fins de roubo). Parece que não tem pressa em deixar a terra firme. Em  poucos momentos percebemos um vapor a rebocar uma enorme  chata, com aproximadamente 100 pessoas, de ambos os sexos,
27
entre eles verdadeiras   pilhas de  bagageas. São emigrantes portugueses dirigindo-se para o Brasil para entre as relações  parentescas, encontrar emprego que a terra natal lhes negaceou (lhes foi  parca).
Nos seus rostos percebem-se ainda os sinais da emociante despedida. As mulheres choram, os homens  mantem-se de pé tristes e conformados. "Meu Deus! - pensei- até para estes é difícil abandonar o pais, embora dirigiam se quase para junto dos seus!  0 que  se deve passar nos corações dos nossos coitadinhos, perturbados por esperanças ílusorias, se em  tal ocasião tem uns momentos de lucidez para saber que passo estão dando?" Todos cabisbaixos pesadamente, entram no navio.
Finalmente aproxima-se a hora derradeira. 0 elevador  parou de er­guer  as bagagens e sonolento ficou dependurado, sobre a abertura do convés, por onde momentos antes enterrou-se no seio do navio. Os marujos correm pa­ra todos os lados. 0 comandante dá o sinal que é respondido por um possante ronco da maquina, cujo éco perde-se  em gemido pelos morros da região. Os oficiais e toda a tripulação já se acham a postos.. Três marujos com  esforço erguem a escada do navio que  gemendo penosamente parece desejar ficar ainda um pouco entre o navio e a terra. Seis braços fortes dobram contudo sua resistência e já se acha a prumo nas costas do navio.
0 gigante tremeu e as ondas como que assustadas pelo acordar, fervilharam. Partimos. Atras de nós extende-se  uma faixa larga, branca e es­pumante de água que  as helices quebrantaram em milhões de partículas bri­lhantes.
Seguimos ao longo de um panorama encantador da cidade. A fortale­za de São Sebastião, contempla-nos com vista ameaçadora, com  suas ameais a  exporem canhões. Ultrapassamos o fantástico castelo de Belém que nos dá o ultimo adeus com a bandeira portuguesa  a flutuar. Aparecem apenas as margens arenosas de ambos os lados que aos poucos o rio que se alarga vai afastando de nossa vista. De longe atinge-nos um barulho, eco das ondas que o vento forte  agita.
Descemos até o refeitório iluminado "ai giorno", para onde  o sino nos chamou para almoço.  Junto as mesas rema um clima de movimentação e falatorio;  adentram várias figuras. Todos os nossos companheiros de viagem encontraram-se; são umas 200 pessoas. Uma verdadeira torre de Babel. Ouvem-se quase todas as línguas, todavia prevalecem o francês e o português. 0 Maitre d'hotel, com solenidade, mostrou-nos o lugar. Aseenetamo-nos, cumprimentando com leve inclinação da cabeça os quatro comensais. São protugueses, um deles entretanto, um tal sr. Leonardo, professor de música do Rio de Janeiro, fala um pouco francês; afinal é necessário entender-se  em por­tuguês embora  com dificuldade, o que todavia não impede  que a conversação corra animada,
Entrementes  sentimos  comoçoes até agora  não experimentadas, um le­ve balouçar de um para outro lado.
28
Olho pela janela e vejo vagalhoes  ali,  perto: um some e aparece diante dos olhos, até onde a vista alcança a distante imensidão da água. 0 navio começa a  balouçar. Quanto mais prosseguimos, tanto maior  é  o balouço, quase  insuportável. Em instantes algum levanta-se da mesa e apressadamente e nervoso corre para baixo. É a infeliz vítima da doença do mar. Rangem as paredes do navios vagalhões batem impiedosamente seu costado, somente a helice, como que  desprezando esta ameaça  do mar, trabalha uniformemente e com a po­tência de suas asas  empurra  o gigante para frente. Com a curiosidade de noviço pergunto se o navio sempre dança desta forma? "Mais ou menos, respondem, sempresomente agora, em vista da proximidade da costa e do vento, o balouçar  e um pouco mais violento".
Que bela perspectiva'.
Um noite  escura abateu-se sobre nós. Do convés somente pode-se ver alguns passos na frente, os vagalhões  revoltos. 0  vento fresco não nos permite permanecer por mais tempo, aliás sinto uma insuperável vontade  da cama. Ainda não soou o relógio das oito, desço para a cabine, e  ponho-me a descansar.
            9 de abril
0 dia  era fatal.
Não me sinto doente, mas seria bem melhor se adoecesse. Cabeça pesada como se fosse de chumbo. 0 chio da água a bater no casco constante, barulho uniforme da helice, acordaram-me varias vezes.
Levantei-me finalmente. Novos problemas. Não é possível  permanecer de pé para se vestir. Vi-me forçado a fazer verdadeiros milagres e evoluções de ginástica fatasticos. Saio, finalmente para o corredor, e bamboleio e  caio sobre a parede. Com dificuldade, servindo-me do corrimão galgo ao convés. Ainda é pior! 0 balançar do navio é sentido com muito mais  força. Há momentos em que se tem a impressão que o peso do navio inclinado vai-nos atirar a todos para dentro do mar. Uma miste­riosa força  ergue-nos para o alto, mas tao somente para nos atirar pa­ra outro lado. Não ha outro recurso, caio sobre o primeiro sofá. Lasti-mavelmente, também aqui tenho que auxiliar com os pés para manter o equilíbrio. Experimento ler em breves momentos, cansado, jogo o livro fora. Contemplo o mar.  Uma  impressão curiosa.   A água de colorido – esverdeado - escuro, tornou-se  compacta, plúmbea. Salienta-se em alguns pontos, refletindo a luz solar nos topos, rola em nossa direçao. Frequen- temente aquela montanha não conseguiu chegar até nós, quebrando-se no meio do caminho, cobrindo-se no topo com  uma espuma branea, depois como que por castigo de impaciência, perde-se nas profundezas, formando um enorme precipício. Às vezes duas dessas montanhas se chocam e com estrondo surdo perdem-se nas profundesas ou  sibilantes  esparramam-se para todos os lados. Vida e luta  fervilham na superfície brilhante do Oceano. Sopra um vento forte  do setentriao, razão porque desfraldaram velas.
29
O navio singra célere, 16 milhas inglesas por hora, ou seja 7 km. É aproximadamente a velocidade de um trem de carga. Dizem que se formos nesta base estaremos em Dacar um dia antes. É uma pequena consolação, por­quanto cada hora é insuportável. Dirijo-me ao salão com a intenção de transpor as minhas impressões para o papel. 0 navio treme de tal maneira que da pena saem apenas uns rabiscos que nem eu próprio certamente vou consegui­rei ler .
Não conheci até agora ninguém e sobre todos  pesa um abatimento. 0 sr. Nicolau não sai  de sua cabine, enquanto eu retorno a minha perio­dicamente, para descansar na cama. Não se  pensa em comer.Até o som do sino para  refeição, causa  repulsa. Na permanente luta com a doença  passou-se o dia de hoje.
10 de abril
0 navio e em todo o seu sentido uma pequena cidade, com todas as suas características. Basta conhecer uma ou outra pessoa, para saber quem é, o que faz, para onde viaja, etc. Convenci-me disto, exatamente, hoje, quando subindo ao convés, muito mais animado, travei amizade com um casal uruguaio, que apôs alguns meses de permanência na Europa, retorna­va a Montevidéu. Num quarto de hora quase conhecia o navio inteiro, senão pessoalmente, então por informações detalhadas que os novos amigos me for­neceram  avidamente.
Este senhor, diziam-me, é um fazendeiro rico de São Paulo. Perdeu cerca de 600,000 francos em Paris, no decurso de 6 meses.
Aquele, outro creso em Buenos Aires, atualmente em vista da derrocada é tão nu quanto um santo turco, mas o rosto e altaneiro, não è. Mas eles, os argentinos, são todos assim!
Ou , por exemplo, este casal, com um  grupo numeroso de crianças, não deveria ficar em casa e cuidar de seus interesses que em verdade vão realmente excepcionalmente.
0 sr. vê esta senhora que  há pouco passou frente a nós; nenhuma se­nhora decente lhe extende a mão.
Desta forma obtive relações detalhadas quase sobre todos. Penso comigo, como essa gente que antes não se conheceu e não se vera outra vez, sabem tanto sobre si. São mistérios das relações humanas que infelizmente  se encontram não só no navio.
Naturalmente, não me gabo desta condição de ampliar o rol dos meus conhecidos. Basta-me por ora meu colega de mesa, sr. Leonardo, com o qual em vista desse excelente  conhecimento da situação brasileira, a conversação é  proveitosa. Pode-se andar com a ajuda do corpo, deste para aquele la­do e manter  um aparente equilíbrio.
No navio reina uma disciplina militar. 0 Comandante  sr. Meunien cabelos grisalhos, com aparência de marinheiro, mantém tudo com mão de ferro.
30
Contaram-nos que numa das viagens, mandou prender 3 portugueses que não se comportaram de acordo, durante 5 dias, isto é não permitiu que durante estes dias abandonassem a cabine. Em verdade, a autoridade do Coman­dante  no navio é autrocrática e muitas lendas sobre ela circulam entre os passageiros. Isto é por todos os lados, porque diante dos mais di­versos elementos que se encontram embarcados, não passaria, se fosse o contrário, sem  acontecimentos desagradáveis e  excessos.
É a seguinte a ordem do dia: levantamo-nos entre 7 e 8 horas. Neste ínterim os garçons trazem para a cabine café ou cha. Ás é o desjejum que consta de quatro  pratos, às 13 horas, lanche, às 17,30 almoço suculento, às  21  chá e às 23 horas apagam-se as luzes no navio. 0 ponto culminan­te do dia  acontece às 12 horas, quando afixam o mapa das milhas viajadas durante as ultimas 24 horas. Há muitas apostas nesta hora que  naturalmente despertam curiosidade geral. Graças ao vento favorável perfazemos em torno de 380 milhas inglesas em 24 horas. Um pequeno relógio submerso e suspenso por uma linha pequena, mostra a velocidade.
Os passageiros preenchem o tempo como podem.Formam-se diversos gru pos  a bordo, atarefadas  no jogo  lotérico, bricadeiras sociais, ou em conversas, nas quais o "próximo" é o principal tema. As senhoras fazem trabalhos, outras ocupam-se com crianças que permanentemente correm para várias partes do navio, com  grave preocupação para as mães. Os senho­res jogam cartas, xadrez e outros. De tempos a tempos alguém assenta-se ao piano e imediatamente é cercado por grupos de melomanos e melomanas. Duas senhoras  exibem-se freqüentemente com canções, mas até no navio o seu talento causa graves prejuizos aos tímpanos.
Para amanhã a mocidade está organizando uma noitada de danças isto se o mar permitir.
0 Sr. Glinka hoje já se sente bem melhor e passou a maior parte do dia no convés, raramente descendo para a cabine. Em geral a doença do mar ja não absorve muitas vítimas.
Será que algum dia esperava ver com os próprios olhos as costas do Saara? Eis que as contemplava agora durante algumas horas. Durante a noite passamos pelas Ilhas Canárias e agora singramos ao largo da costa  ocidental da Àfrica. Ao longe percebe-se o oceano de areia. A superfície é plana e deserta, as  vezes aparece ao longe um ponto escuro em forma de choupana; são moradias dos pescadores negros. Sentimos as ondas de vento quente que a  velocidade do navio dissipa. Todos  estão presos ao corrimão do navio, contemplando esta imensidão, penetrando, pa­ra ver se a vista não percebe algum sinal de vida. Infelizmente! - a mor­te domina tudo; levantam-se apenas   nuvens de poeira que o vento leva para o além. É um país triste panorama e assim mesmo esta taciturna visão de terra firme enche-nos de certa consolação.Involuntariamente lem-bramo-nos  de que só lá podemos buscar socorro
            31
Hoje desci para a proa do navio. Aqui reina outro tipo de vida. Em cantos  e  esconderijos acomodam-sei os passsageiros, fugindo dos raios solares que fustigavam. Uns dormem, outros confabulam, e terceiros deitados olham  as ondas distantes das águas. Estes certamente pensam naqueles que abandonaram para sempre.
Segue conosco um destacamento de soldados franceses que se dirigem ao Senegal Aguardam-nos dois horriveis anos de lutas mortais com o clima e com a doença. Quantos deles volatarão a França ?!  Em suas faces estão esculpidos a tristeza e o abatimento.
Um português toca bandolim, enquanto uma pequena portuguesa, vendo um rabo de saia, tomou-a em suas mãozinhas e procura dançar. 0 navio inclinou-se mais profundamente  e a coitadinha tombou. Não fosse o cuidado da mãe, que a agarraou, teria caido. Não se assusta com isso e continua a bater com os pequenos pés.
Um pouco adiante, de ambos os lados do navio, acham-se gaiolas, em que são transportados bois vivos, novilhos, carneiros e outros animais, graças ao que temos  sempre carne fresca. Ao lado  fica  o açougue e a cozinha, de onde saem a cada instante  assados e pão. O ponto mais saliente do navio foi destinado para acomodar os marinheiros e a cria-dagem. Camas estreitas, com três ou quatro sobrepostas, servem para o descanso.
Retornando ao nosso pavimento, visitei a cozinha. Foi localizada no centro do navio. Oito cozinheiros e algumas dezenas de ajudantes, agitam-se em redor  das mesas e  fogões, preparando o almoço. A ordem e a limpeza imperam em toda a parte. Ao lado da cozinha, junto às mesas, alguns soldados, tendo arregaçado os uniformes, as capas, ou em jaquetas, com kepis a penderem  no alto das cabeças, descascam batatas e verduras. Parece que por enjooj entretem-se tais  passatempos.
Pela primeira vez contemplo o por do sol sobre o mar. Não tenho nem um veio de fantasia poética, mas assim mesmo não posso despreender vista deste espetáculo. 0 ceu é tão límpido que tem se a impressão de que a vista pode penetrar centenas de milhas. Da parte do poente o ceu coloriu-se de alaranjado que aos poucos passa para uma cor mais  fraca no resto do firmamento e para o nascente perde-se num dourado fraco que co o contraste das águas  coloridas  transforma-se em algo encantador. As nuvens esparsas formam imagens fantásticas. Aqui aparece um monstro, a vomitar fogo vermelho. Acolã, ao longe, desaparece em igual colorido uma cidade, organizada sobre o dorso dos vagalhões do oceano. La um mato a incendiar-se, pois nuvens de fumaça ardente cercaram as àrvores, do seio do quais podem ser reconhecidas apenas as silhuetas. E também aparece um gigantesco camelo a caminhar pelo deserto; No seu dorso brotaram duas montanhas e o pescoço dobrado em arco mal e mal supor­ta a cabeça. Abandonou os areais do Saara e passeia pelo firmamento. Onde quer que o olho pouse, surge novo quadro, que a fantasia desper­ta pela visão até agora jamais vista, procura descobrir imagens
32
Finalmente a vista detem-se sobre essa enorme bola de fogo, que ao espreitar por detrás da nuvem, dependerou-se sobre as águas. 0 bri­lho conferiu a bola e às águas um estranho  fulgor; brilham como  aço. Ela entretanto   titubeia  e tremelica, enterrando seus raios fulgurantes nos mergulhos  do oceano  ondulante. Travou-se  uma luta  entre o fogo e a água. 0 mar quer engulir  a bola  solar e atira contra ela toda uma legião de vagalhões. Não é tão fácil vencer o sol.  A coragem dos atre­vidos e severamente castigada, pois  afastam-se, salpicados de sangue e perdem-se nas  profundezas. 0 oceano envia novos esquadrões, mas  eles igualmente batidos pelos ofuscante brilho do sol, partilham da sorte de seus predecessores.
É  tremenda a potência das águas, pois parece que o sol já começa a perder as forças. A bola na sua parte de baixo começa a alongar-se. Uma parcela  dela já está sendo apanhada, num abrir e fechar d'olhos, pelos va­galhões e com milhões de braços  atraem para os abismos. 0 sol se defende, mas em vão. Submerge cada vez mais e o mar triunfante abocanha-no. Só por instantes a faixa ígnea, mantem-se na superfície das águas, mas tam­bém desaparece, dizendo adeus ao dia, com um gigantesco feixe de luz que alaga o firmamento inteiro com sangue e escarlate.
Permaneci no convés, mergulhado numa adoração silenciosa. Aque­le que desvenda tais maravilhas ao olho humano e com a Vontade Onipoten­te, governa o mar, o sol, toda a natureza e o homem que se humilha dian­te de sua Sabedoria e  Onipotência.
A noite foi bastante animada e alegre.. A mocidade organizou uma dança no salão de miusica que se acha acima  do refeitório. A dança parece animada ao balouçar dos navio. A cada instante um par perde o equilíbrio e cai sobre a primeira parede com ímpeto, ou sofá, ou  mesa. Isto não impede que a daça prossiga.
Junto ao leme reuniram-se as crianças. Organizou-se uma grande ro­da quej girava ao canto. As mães fazem companhia a esta brincadeira, pois sua intervenção faz-se necessária a cada instante.
Ao lado do mastro mestre reuniu-se um grupo. Lá o Senhor P., cola­borador do pariense "Temps", em viagem de estudos á América  do Sul, pro­voca entre os congregados freqüentes risadas frenéticas, com o seu monó­logo humorístico.
Na sala de fumar, junto á cabine do Comandante, igualmente reina a animação.
Os homens jogam cartas e bebericam champagne. Os jogos de azar são proibidos no navio, por isso abundam  "wist", "Écart”, "pikiet" e outros, com os quais  muitos matam o   aborrecimento.
0 dia de hoje passou  ligeiramente e somente o apagar das luzes levou -nos a cabine.
11 de abr i1
Todas as nossas esperanças de chegar antes a Dacar evaporaram. Alguma coisa falhou em nossa máquina; dizem que houve aquecimen­to do eixo, em vista do que estamos parados desde cedo, a mercê  da brin­cadeira das vagas. Graças a Deus não conheço até este momento, o sofrimen­to da tempestade, mas pode ser alguma coisa pior do que esse insuportável balouçar do navio impotente  e entregue as ondas?  0 singrar ferte ofere­ce ao navio uma certa resistência no balouço. Esta  chegando  o momento em que reúne todas as energias, para retirar seu lado dos abismos e  incli­nar para outro lado. Essa mesma energia mecânica, até certo ponto, alcan­çava a gente que desta forma sente que  o gigante não se deixara dominar pelas ondas. De outra forma, enquanto a maquina descança inativa e o mar agita o barco como se fosse uma casca. Desaparece toda resistência ou pelo menos  não se a sente. 0 navio caiu numa espécie de sono do qual não se o pode despertar e permite que as ondas brinquem  com ele. Ah! quão cara é esta brincadeira! Metade dos companheiros está de cama, doente e o restan­te perambula (arrasta-se) pelo convés murcha e abatida. Todo oficial, todo marujo e todo garçon  e bombardeado de todos os lados com dezenas de  lábios com uma única pergunta: A maquina já está consertada? a qual sempre obtém a resposta fleumática: ainda não!
Toma conta de mim um indiscritivel desânimo. Tristeza, saudade, aborrecimento enfim dão-se as mãos para  perseguir sem piedade. Desejaria que a tempestade edoidecesse, para que afinal o navio fosse a pique, com tanto que parasse de balouçar e permitisse  para que pelo menos por um instante a gente fruisse de  um calmo equilíbrio.
Entretanto chega aos nossos ouvidos o  martelar em torno da maquina. Quando param de bater, tem-se a esperança: talvez já terminaram? Que nada! continuam martelando!  Procuro em todos  os refúgios do navio um canto mais calmo. Corro para a cabine, experimentando se na cama não ficara melhor. Em vão! Em toda parte essa vagarosa e constante  ninar. Parou o vento, nem se pode  soltar as velas. 0 oceano é calmo, como um  espelho, estufa-se so­mente  para fazer conosco uma  brincadeira  de mau gosto.
Na hora do almoço, o refeitório esta praticamente vazio. Quem haveria de querer comer  em semelhante estado de espítito?
No convés, quais  sobreviventes, acham-se deitados os companheiros de viagem, queixando-se do comandante, da maquina, do navio, do mar, de tudo !
Mal caiu a noite, refugiamo-nos na cabine, talvez o sono  ame­nizara? !
            12 de abril
Somente às três da madrugada prosseguimos a viagem. Singramos mas acuda-nos Deus, como! Circula o boato de que assim será a viagem inteira até o Rio,
34
pois somente lá poderá ser consertada adequadamente a maquina. Isto é de menos, pois a balouçar insuportável parou e o navio retornou  ao ritmo anterior ao que já nos acostumamos plenamente, uma vez que não nos causa nenhuma impressão. Entretanto começamos a sentir violentamente o calor. Não se sente o menor sopro de vento e apesar de ter sido extendido sobre todo o convés um pano que protege  contra os raios solares, o calor a ar sufocado dominam em toda a parte. A corda água mudou, seu escuro colorido passou para azul e o navio mal afasta suas ondas que   resvalam como se fossem de azeite. Toda a superficie do mar parece enrugada e lembra  um campo recem-gradeado. Freqüentemen­te levantam-se bandos de peixes voadores que por algum tempo voam por sobre a água, brilhando com suas escamas  ao sol e alguns pés adiante afundam no mar. Dizem que e a única forma de fugirem estes pequininhos da sanha do per­seguidor marítimo. Acontece freqüentemente que alguns  na fuga e desespero caem no navio ou nas cabines pelas janelas abertas.
Conheci, hoje uma  personalidade sobremodo interessante: Dr. Gad da Dânia que viveu no Brasil durante 15 anos e conhece-o  a fundo. Passa­mos algumas horas em conversa útil. Não lhe é estranha a sorte dos emigran­tes, pois, há alguns anos  chegaram a São Paulo algumas centenas de seus patrícios, igualmente iludidos  pelas promessas mentirosas dos agentes. Tinha com eles muitas imcomodações. Uma parcela delas  morreu, outra re­tornou ao país e somente alguns, depois de graves dificuldades e sofrimentos, por necessidade, estabeleceram-se no Brasil.
0 Dr. Gad prometeu  estabelecer contacto com um fazendeiro que retorna com a esposa e com o filho da Europa para sua casa. Ele dará informações sobre as condições de trabalho nas plantações de café. Estabeleci relações com dois brasileiros que de bom grado fornecem-me todas as informações.
Tenho a impressão de.reunindo aquilo o que  sei pelos livros e o que me fornecem os bons companheiros de viagem, não desembarcarei em terras bra­sileiras, com olhos vendados.
13 de abril   (Dacar)
0 silêncio e a calma despertaram-me do profundo sono. È isto, quando o ouvido se acostuma ao barulho da helice e das águas que  o dorso do navio desune, o silêncio e a calma, tornam-se algo inusitado e acordam do so­no .
0 primeiro pensamento foi este: novamente alguma coisa estragou na máquina!  Cobri-me com manto e corri para o convés. Não! Meus temores não se concretizaram! o lusco-fusco mal espalhava sua fraca luz sobre a vila e montanhas vizinhas. Sim, Dacar, merece apenas o nome de vila.
35
Algumas casas brancas espalhadas sem qualquer simetria, aqui e acolá; compridos e escuros depósitos de carvão; as vezes uma palmeira  apontando para o ceu, ou uma palma frondose ao longe as cabanas dos negros, eis tudo o que a vista pode abranger no primeiro instante.
0 navio ainda não lançou âncoras, quando de todas as partes acoreeu um enxame  canoas de negros. São pequenas estreitas, geralmente desbastadas de uma tora. Algumas trazem peixes, outras frutas, outras ainda movidas por remos à maneira de pá, pontiaguda e  movimentada por três ra­pazes. Estes últimos não tem nenhuma roupa, só um pequeno avental cobre os seus quadris. As cabeças sem chapéu, geralmente com os cabelos cor­tados rente até a metade, bem como a tez negra da testa, brilaham à luz do sol nascente. A julgar pelos seus movimentos nervosos com que forçam a canoa para apressar, julgar-se pode que eles tem uma importante missão a cumprir, junto ao navio. 0 enigma e  desfeito em pouco tempo. Num francês macarronico esmolam  para que seja atirado um franco a água. No instante em que  a pequena moeda de prata afunda no mar, com a velocidade de uma enguia atinam-se alguns deles e as vezes ate mais de uma dezena. No  espelho das  ãguas vibram apenas  as solas do pé, brancas, depois somente se vê  na água transparente seus movimentos  batráguios e tudo some nas profundezas. Poucos ins­tantes depois surge uma cabeça do líquido verde, depois outra, terceira, dé­cima, até que finalmente  surge o vencedor, segurando a moeda entre os den­tes brancos. Das fossas nazais  fluem duas correntes de água e ainda sacode o sabor da água  saloba, mas feliz, triumfante, vitorioso, mostra o troféu, certamente por medo de roubo por parte dos  ávidos companheiros, guarda a na boca e é continua a esmolar adiante. Isto causa uma péssima impressão e a cada instan­te cai uma moeda de meio franco em cujo torno recomeça a mesma luta.
Percebo um pirralho de uns oito anos que não podendo competir com os mais velhos, nadou para o lado e implora com voz chorosa para que lhe seja dada igualmente a oportunidade para a “pejorativa competição . Da água mal aparece sua cabeça  "kedzierzawa" e olhos brancos salientes. A onda cobre lhe os lábios, po risso tosse o coitadinho, mas não para de pedir. Não sei se por misericórdia, ou por divertimento alguém atirou um dinheiro, mas  alguém mais velho num piscar de olhos conseguiu conquistar a moeda no fundo do mar. 0 pirralho abriu o berreiro, para grande alegria dos demais. Não se deixa por vencido e enxugando com  a mão as lágrimas, experimenta sorte adiante.
Não entendo como a polícia marítima pode permitir para esta escan­dalosa maneira de pedir esmola. Deixando de lado o aspeto moral, humilhante, esta pescaria  é repleta de grande  periculosidade, pois as costas de Dacar, são famosas pela presença de tubarões que anualmente consomem algumas ou algumas dezenas de vítimas. Como única defesa contra estes famigerados mons­tros, cada negro porta no peito "cri-cri", uma espécie de escapulário de couro, em que os feiticeiros costuram um pedacinho de tubarão, pequans astros ou pedrinhas. Estes "cri-cri" as vezes atingam altos preços; o pai deixa-os como herança ao filho, que com respeito religioso  cuida o talismã,como o olho do rosto.
36
            Admiro a força dos pulmões destes garotos. Alguns deles por um preço combinado  passam nadando por baixo do navio. Essa  empresa perigosa, segundo o relógio, dura  40 segundos. Informaram-me que as autoridades  locais proibiam essas compe­tições, mas os negros sabem fugir de sua vigilância, portanto atualmente fazem vistas grossas para isto!
Aos poucos chegam os barcos maiores com  várias mercadorias. Os negros vestem trajes exóticos, as mais das vezes com  um manto largo, semelhando casula de percaline muto colorida. Nas cabeças portam faixas ou turbantes. Cada um canta as qualidades de seu produto: bengalas do dorso de tubarão, papagaios, macacos, tijelas  de coco, punhais e outros objetos. Outros oferecem-se para guias em Dacar. Aproveita­mos esta oportunidade e decidimos descer para  o solo de Senegal, para visitar Dacar.
Senegal desde longos anos é uma colônia francesa. Ainda no século XVI visitaram-no comerciantes de Dieppe e desde  1664 tornou-se posse-çao oficial franeesa. Até o século passado praticamente não encontramos menção sobre Senegal. Somente nos fins do século XVIII a competição da Inglaterra provoca  confrontos, que no ano de 1817 terminam com a manuten­ção pela França  desta colônia. Desde 1885 o general Faidherbe tornou-se chefe  do Senegal e com sua administração prudente contribuiu para o seu real desenvolvimento.
0 Senegal divide-se em duas partes: St. Louis e Gorée. Para o primei­ro leva  a estrada de ferro de Dacar, enquanto Gorée acha-se espalhada pelas montanhas de fronte a Dacar e constitui uma pequena trincheira francesa e ao mesmo tempo a Sede geral da Guarnição.
Dacar em si conta com uns 500 brancos, juntamente com a equipagem e 6.000 pretos. A vila estende-se  sobre areia e por isso causa uma triste impressão. As casas européias são construídas de madeira ou pedra, com enormes varandas e com  janelas hermeticamente fechadas com cortinas verdes. Existe aqui uma igreja católica, muito limpa, correio, com uma estação  com cabo sulmarino, comando, quartéis dos "s pahisow" hospital e dois restaurantes mantidos pelos franceses. Além disso as Companhias "Messegeries  Maritimes" e “Chargeurs Reunies”, construiram em Dacar, uma grande estação carvoeira, das quais abastecem os navios na travesia  do Atlântico.
Mal pisamos o solo e ja fomos cerdados por uma multidão de negros esmoleres. Não sei qual e a história da civilização que os franceses im­plantaram aqui, mas que ela não produziu frutos atraentes, poude-me con­vencer  suficientemente. Toda a população de Dacar transformou-se  em bando de inveterados  vagabundos, que se aquecem ao sol, pescam às vezes e o mais das vezes esmolam até enjoar. Em verdade tem que-se livrar des­sa insistência, de maneira formal. Essa corja corre atraz de cada euro­peu, aos empurrões e com gritos estridentes, buscam atrair a atenção sobre si.
37
Vi, entre eles, crianças com apenas alguns meses, pendendo de lençóis pendurados nas costas das mães e estes pequeninos já estendem as mãos e apanhando com mão de macaquinho a moeda começam a olha-la  de to­dos os lados e depois entregam-na  ás suas mães. Os franceses estabele­cidos em Dacar não fazem cerimônia com os pretos e se não podem livrar-se de sua insistência de outra forma recorrem  ao braço ou ao porrete. Nesta oportunidade o negro  corre como um animal tangido por chicote, foge alguns passos, mas não desiste, mas grita por esmola ainda com maior veemência.
Com dificuldade caminhamos em frente, pisando a areia vermelha, cujas   nuvens provocadas pelo caminhar dos negros  assentam sobre nossas roupas, na face, penetram na vista e até na boca, fazendo ranger horrivel­mente  os dentes.
0 fim do nosso passeio é a visita ao rei de Dacar. 0 título real não tem nada a ver com a autoridade que é exercida pelo governador francês  de St. Louis. Trata-se de uma herança dos tempos antigos quand o cacique de Dacar tinha realmente subordinados. Se o  atual rei já her­dou a dignidade real "in partibus infidelium", ou se ainda exercia al­guma  função, não pude descobrir. Basta que ele  seja o ponto culminante da atração para os passageiros que desembarcam para algumas horas no território senegales.
0 nosso guia previne que  sua majestade Dial-Diop e seu amigo pessoal o que a julgar superficialmente, não testemunha favoravelmente sobre a grandeza  da ex-mandatário de Dacar no que respeita a escolha de amigos. Mas isto é de menos, pois não é a batina - neste caso  uma bem  rasgada camisola  e calças que mal chegam aos joelhos, que faz  o valor  da pessoa humana. Caminhamos apesar que  a areia atinge  as costa e o sol fustiga impiedosamente, a curiosidade força-nos a estugar os pa sos. Atravessamos a aldéia européia, o que  levou uma meia hora.
Adentramos  o quarteirão dos negros.
Uma quantidade incontável de cabanas  espraia-se diante de nós, são cobertos com folhas da palmeira, lembrando com suas formas pequeno pitos de feno. Não há nenhuma estrada; temos que  deslizar por meiodos casebres, cuidando dos pés, pois as noções de esgoto, ainda não chegaram a Dacar, e com isto os nossos pés também sofrem.  Depois de um quarto de  ofegante caminhada, achamo-nós diante de uma cabana um pouco maior, mas nem pela forma, nem pela higiene dis­tingue-se  das outras.
-Eis o palácio do rei de Dacar -  diz com certo orgulho o nosso guia .
Detívemo-nos com a convicção  que algum camareiro nos levara até a majestosa face do monarca, mas o nosso cicerone não nos permite pensar muito tempo e  ele próprio  penetra sorrateiramente pela fenda baixa, chamando-nos com o dedo para que seguissemos atrás dele.
38
Isto atesta que  com certeza ele possui  relacionamento muito próximo e de confiança. Inclinamos as nossas colunas e adentramos. 0 mesmo fazem alguns companheiros de viagem que se uniram a nós no percurso.
Na entrada  fomos surpreendidos por uma escuridão que  de ime­diato impede   distinguir os objetos. A luz penetra pela abertura para dentro da tenda, que mal haviamos ultrapassado e que as costas dos com­panheiros vedam. Aos poucos a vista acostuma-se  e vagueia curiosamente por esta sala de recepção. Seu soalho e a terra nu, onde rastejam algumas crianças negras, provavelmente fugindo dos visitantes para lugares mais escuros. Não sevê nenhum movel, entretanto dos catres começam a levantar-se figuras negras, semi-nus, ou cobertas de trapos. Uma negra apressa-se  pa­ra um cômodo e traz um enorme chapéu de palha de arroz, ornamentado de vários objetos decorativos que põe na cabeça de um velho que se levanta. É simbolo da dignidade real. 0 nosso guia aproxima-se dele, sacode fir-memente o ombro, provavelmente querendo acorda-lo plenamente, pois ainda está semi-sonolento e com voz triunfal anuncia:
-Voilá le roi de Dacar!  Sua majestade, esta  com febre acrescenta, nem por isso cumprimenta os senhores cordialmente.
Estende-se em nossa direção uma mão seca, ossuda. Achava-me mais próximo e  primeiro tomei uma mão, sentindo um corpo doentio que se chega a minha mão. Tenho vontade de retirar a mão, mas sua majestade detem-na firmemente, estendendo ao mesmo tempo a outra, segurando-a aberta ao alto.
- 0 que  significa isto, pergunto surpreso ao guia.
-  Nada - esclarece - o rei de Dacar pede uma  doação.
- 0 que ?-  partiu involuntariamente dos meus lábios.
- De lhe uns “sus” - sussurra ao ouvido um francês presente.
- Ao  rei de Dakar - Alguns “Sus” - rebati admirado- Jamais!
Tirei um franco brilhante e coloquei na pele branca da mão aberta.
0 rei olhou cuidadosamente a moeda, sorriu, meneou a c abeça, em sinal de satisfação e guardou no seio o franco.
A mesma cerimônia repetiu-se com o sr. Glinka.
A nossa generosidade causou boa impressão entre os negros.
Nisto achega-se uma velha negra que é apresentada pelo guia como a rainha de Dacar, Mal - Diop. Ela também nos cumprimenta com uma mão e estende a outra para esmola. Não queremos semear discórdia no seio da realeza, porisso cada um de nós cumula-a com um franco. Eis que seguem princesas, com pequenos príncipes nas costas e esmolam sem a menor  cerimônia. As mães recebem meio franco, seus nobres descendentes dois "sus".
A seguir somos cercados por um bando de "wrzekomych" ministros  e dignitários que berram  insuportavelmente. Atiro-lhes algumas peças de moe­das miúdas e fugimos quanto antes do palácio real, perseguidos por dignitários inferiores emditados à esmola.
39
Assim foi a nossa visita ao rei de Dacar a quem, segundo dizem,a ge­nerosa França destina 600 francos anuais para  a manutenção sua, das esposas, das crianças, da corte, etc.
Nada  há de estranhar que esmole. Antigamente seus antepassados com certeza vendiam milhares de escravos aos brancos, hoje, ele, seu descen­dente em troca de uns níqueis vendem-lhes somente...sua própria dignidade. "Têmpora mutantur"I...
È um destes frutos abjetos da esporádica civilização nas terras africanas.
Retornamos ao qufarteirão europeu, para depositar cartas no correio e enviar telegramas para Varsóvia. 0 escritório do correio está fechado e como nos esclareceu um funcionário negro, somente  abrirá por  volta das 14 horas. Falta ainda meia hora, porisso decidimos esperar.
Entrementes de vários cantos vem os passageiros  do "Bresil", com as mesmas intenções que a nossa. Passamos o tempo com  troca  mutua de impressões.
Chega igualmente aquele alegre  monologordo convés e jornalista de Paris, sr. P. que carrega numa bolsa colorida, pendurada a tiracolo, um manto  de negros. Observamos curiosamente esta aquisição e perguntamos onde pode ser adquirido. Proponho ao Sr. Glinka para irmos ao lo­cal referido. Mal  pronunciei as primeiras palavras, surge um negro e num polonês castiço diz: - Se os senhores permitirem, posso leva-los!
                      - Santo Deus! -  exima estupefato o Sr. Nicolau- E quem é você? Como  apareceu aqui?
Eu estive durante 10 anos em Varsóvia - disse  inclinando o chapeu e enumera a lista de pessoas conhecidas, onde foi empregado.
0 encontro de um negro que fala polonês no Senagl, deve ser arrola­do as surpresas originais.
Armand, somente isto pude descobrir sobre  o nome do negro que de Varsóvia, foi a Petersburgo. E dali  perambulou por quase toda a Europa. Recenetmente aquele jornalista encontrou-o em completa miséria, em Lisboa e levou-o como ajudante para o "Bresil" Fala as seguintes línguas: francês, alemão, italiano, português, espanhol, russo e polonês. Realmente é uma figura curiosa. Suspeitavam dele, que devia ter  cometido alguma coisa e porisso procura refúgio, na constante  peregrinação pelo mundo.
Feito o correio, sentimos que o nosso estômago começa a reclamar os seus direitos. Acompanham-nos até o restaurante francês, que se acha  per­to da costa. Encontramos lá uma verdadeira multidão de companheiros de via­gem, bem como oficiais franceses que se apressaram em usar a língua europé­ia. Burburinho, gritaria e calor reinam horrivelmente.
40
Os humores estão exaltados, como atesta a batelada de garrafas vazias de champagne.
0 ativo proprietário querendo agradar aos hóspedes, reuniu no ter­raço um  bom grupo de negros e negras  que apresentaram danças nacionais. Dois negros estão parados ao lado e percutem um bumbo alongado. Diante deles formou-se um grande circulo, composto por negras que parecem ou­vir esta música monótona. De repente uma delas pula para o centro, prin­cipia a rodopiar e agitar as mãos. Os bumbos ressoam cada vez mais alto e mais rapidamente; a multidão grita e uiva formalmente, no que  a bailarina estimulada cai num ritmo doido, até que ofegante retira-se para o lado, deixando lugar para outra. A dança não tem nada de atraente, e selvagem e mecânica. 0 maior entusiasmo, despertou uma dançarina claudicante, uma das pernas mais curta forçava a evoluções corporais pouco estéti­cas.
É tempo de retornar ao navio, pois a partida foi anunciada para as 16 horas. Acalmam-nos dizendo que navio não zarpara antes do anoitecer. Prefeimos todavia ser pontuais, afinal o passeio de algumas horas cansou-nos a valer e  ressentimo-nos de repouso.
Pelo caminho compramos ainda algumas bugigangas locais, repelimos os esmoleres e as 16 estamtos no convés. Os negros sob vários pretextos, incomodam-nos também aqui, enquanto  navegam permanentemente em redor do navio aquelas canoas com adolescentes, para retirar das águas as moedas atiradas.
Enquanto isto dos oito enormes depósitos carregam carvão para den­tro da embarcação. Ela precisa de uma quantidade grande de reserva, pois é para nove dias e os enormes fornos do motor consumem nada mais nada menos que 75.000 quilos.
0 pó preto recobre todo o convés; penetrou até no refeitório e nas cabines, de modo que a permanência nas mesmas é impossivel. Escondemo-nos no cantinho, junto ao grande mastro, aguardando impacientemente a partida,
14 de abril
Zarpamos apenas a meia noite, até aquela hora consertavam a maqui­na. Causa-nos a impressão de que navegaremos mais celeremente e sem para­das. Infelizmente estas promessas não se cumpriraram. Durante o café  apa­receu o comandante e anunciou que o navio vai parar.
E realmente estamos parados, balouçando daquela forma horrivel como anteriormente. Para cúmulo, o calor nos castiga sem piedade. 0 termômetro aponta 30 graus Reaumur, a sombra. Aqueles que conseguiram resistir a doença, tentam pescar com anzóis improvisados as pressas. Até o presente não vi que alguém  conseguisse retirar  das ondas do mar algum peixinho. Em compensação um guri, que , debruçado sobre a balaustrada olhando curiosa­mente á pesca infrutífera, quase caiu para dentro do mar. Este incidente que não se concretizou arrancou o navio inteiro de  "gelo" pelo susto.
41
A cada instante alguém desce até as máquinas e volta com  a mesma no­tícia: ainda estão consertando.
Ao entardecer  um bando de delfins surgiu a poucos metros do navio. Es­ses  poderosos monstros  rebolam espontaneamente pelo mar. Freqüentemente seus dorsos gordos surgem a tona, depois desaparecem, para reaparecer  al­guns passos adiante da mesma forma. Esse passeio dura uma meia-hora, depois somente ao longe  brilham  suas costas. Como é natural, sondamos com curio­sidade aguçada, cada movimento. Um dos oficiais explica que os negros comem com apetite a carne dos delfins, embora  não tenha gosto para os europeus e cheire Bilis (tranem), que constitui o único proveito da pesca destes animais marinhos.
Quando cai a noite no convés  faz-se silêncio e deserto. Não há conversa  para divertir-se; quem ainda não se recolheu a cabine, apressa-se, embora saiba que lá o aguarda calor insuportável. Paciência, talvez o sono  tra-rá algum alívio ou pelo menos permita matar algumas horas desse tempo que se arrasta.
            15 de abril
Hoje faz uma semana em que me encontro no navio e parece-me que já é um século. Concretamente no decurso de uma semana deveriamos estar no Rio, mas em vista do lastimável estado da nossa máquina, ninguém pode  prever a data   definitiva.
Pelo meio dia deram o sinal de partida. Invade-nos uma certa espe­rança, mas  palpitam que a cada instante a máquina pode avariar e estaremo forçados a parar. Essa incerteza é insuportável. Recolho as energias restantes para tomar um livro, mas a leitura vai com dificuldade e as letras fluem preguiçosamente diante dos meus olhos.
Por sorte, o Dr. Gad mantém a palavra e apresenta-me aquele fazen­deiro, sr. Negreiros. É uma pessoa ainda muito jovem, tem apenas 26 anos, embora esteja casado, há oito anos. Possui plantação de café nas proximidades de Rio Claro, na província de São Paulo. Fala animadamente e de maneira, fornecendo-me informações e detalhes. Assentamo-nos nas proximidades do leme, onde geralmente encontra-se  menor numero  de pessoas e passamos ali umas duas horas, prometendo repetir ocasionalmente o bate-papo. 0 sr. Ne-greiros convida-me para que o visite em sua fazenda, o que de bom grado prometi.
Hoje é lua cheia.                                                                                                                         
É pena que não sou pintor, por que de fato o mar  iluminado pelo lufar, é tão encantador que não pode ser descrito em palavras. 0 céu esta salpicado de estrelas e um  feixe longo de luz  cai no oceano,  prateando sua superfície ondulante. Com esta iluminação   os vagalhões  revoltos partem-se em milhões de brilhantes. A imensidão imersa na escuridão  en­via novos vagalhões queorgulham-se  ao luar, mas apenas por instantes, para ceder lugar a outras e perdem-se  na escuridão.
42
Parece que  as águas começam a viver, que a lua  despertou a dança dos vagalhões que ao luar rebolam  animadamente. Quanto mais se olha  para  as ondas brilhantes , tanto mais aquele magnífico caleidoscópio torna-se  movimentado e  muda suas cores mais celeremente. Pode-se olhar durante horas esse  quadro encantador e a vista  sempre  vai encontrando novas maravilhas. Até  o sono abandona a vista e com dificuldade pode-se despreender da visão e adentrar para a cabine abafada, aquecida  com a canícula do dia.
            16 de abril
Quanto mais nos aproximamos do Equador, a atmosfera torna-se mais pesada e o calor queima o corpo, como se fosse com ferro em brasa. Nas mãos e no rosto sente-se uma espécie de óleo. Suor em bicas desce pela fronte. Para cumulo da maldade, nossa cabine encontra-se para o poente, por tanto  durante uma boa parte do dia  o sol derrama seus raios impiedosamente sobre ela. Du­rante a noite não se pode pregar a vista. Maior parte dos passageiros dorme no convés, em vista  da corrente mais fresca do ar, mas é muito perigos.
A máquina até aqui vai indo. Singramos com a velocidade de 14 milhas inglesas/hora e o comandante promete que amanhã, se não encontrar nada ruim, aumentara a velocidade.
            17 de abril
Estamos atravessando agora a chamada faixa das chuvas. Em verdade as chuvas são constantes. Por sobre as águas elevam-se  permanente cerração; a cada instante  correntes de água quente caem sobre nós. O oceano que depois de Dacar recuperou  sua cor cinzenta, agora tornou-se quase preto e a água causa uma impressão de geleia. 0 ar abafado lembra até certo ponto a proxi­midade de uma tempestade, quase não permite respirar. Apesar que cada um ves­tiu-se com as roupas mais leves possíveis, o calor reinante é insuportável. Não se pode permanecer nem por instante nas cabines e nos salões, dão a impressão de uma sauna romana. Escrever  nestas condições é  um verdadeiro calvário.
18 de abril
Atravessamos o Equador de madrugada. Apesar que o sol quase cozinhou os nossos miolos, os mágicos fizeram algumas brincadeiras para os facilmente crédulos. Um passageiro, por exemplo caiu no  conto que na linha equatorial de um lado acha-se um policial francês e  do outro um  brasileiro, os quais fazem continência  ao navio que passa. Perguntava  durante muito tempo e queria saber onde e de que forma foram instalados aqueles homens de segurança. Naturalmente  exclareceram-no de forma a mais cômica possível, para sincera alegria dos presentes.
43
Uma senhora garantia que  alguém ao passar pelo Equador, viu com os pró­prios olhos a linha  negra que constitui uma espécie de linha divisória entre dois hemisférios. Sentia muita pena que a noite não lhe permitiu ver esse fenômeno. Circulam boatos sobre brincadeiras e mágicas dos marinheiro Cada um, o quanto possível procurava precaver-se   de qualquer surpresa. A noite paralizou todos os projetos. Até o banho obrigatório dos noviços de terceira classe, desta feita não teve lugar.
A chuva aqui também não para, embora chova mais espaçadamente e não seja tão copiosa. A cerração cobre permanentemente a superfície da água.
Dizem que a gente se acostuma a tudo É provável que nós também nos acostumamos ao calor; pelo menos não nos castiga neste instante com  tanta veemência.
De noite o mar e fosforescente. Somente hoje percebi isto. Parece que os topos das ondas ardem com um fogo  pálido. Dura poucos instantes e desaparece, surgindo em milhares de outros pontos. Parace um jogo de  luzes que saltam acionadas pelas ondas encrespadas.
Parado a noite no convés, sinto com mais freqüência correntes mais amenas. É fácil deduzir que é um ar fresco relativo, momentânea amenização, lembrando um leve movimento de  leque.
As correntes quentes cercam de todos os lados e cobrem com um ca­lor real, onde é dificil respirar. Muitas pessoas em  vista disto  apanharam a gripe e tossem. São  conseqüências naturais, embora passageiras, da mudança da temperatura.
            19 de abril
Encontramo-nos atualmente  em frente a Pernambuco; todavia ainda algumas milhas inglesas nos separam do continente. 0 nosso navio, como to­dos os outros que zarpam de Bordeaux no dia 5 de cada mês, não se detém nem em Pernambuco, nem na Bahia. Passamos ao largo destas duas cidades a certa distância. Pela primeira vez durante toda a viagem  vemos um navio. É apenas um pequeno  ponto que  pintou na superfície da água e no firmamento. Todos munidos de lunetas, subiram ao convés para observar  de longe o companheiro da aventura marítima. Somente uma hora mais tarde começamos a perceber  certas figuras.Vem-se as velas enfunadas e um  faixa de fuma­ça escura, mas a distância é tão grande que o nosso navio nem sequer da sinais. Segundo tudo indica, como nos afiançam os oficiais,  trata-se de uma embarcação comercial de uma companhia inglesa. Durante muito tempo ainda o vemos, mas cada vez menos distintamente, e afinal, como por um sopro do vento, desaparece dos nossos olhos.
Existe um costume de fazer no convés uma festa, cujo lucro  vai para a caixa  da sociedade de proteção aos náufragos e suas famílias. Hoje o comandante convidou a comissão da festa, da qual fazem parte jovens de ambos os sexos. Ela deve encarregar-se da organização do programa.
44
Existem, segundo a fama que corre, vários projetos. Alguns se definem pelo concerto. Sinto arrepios só em pensar que terei que ouvir dueto de duas senhoras que assim mesmo diariamente castigam os nossos timpanos. Parece que existe um violinista amador, mas ao que tudo indica avalia modestamente o seu talento, só a noite quando poucos encontram-se no convés, toca junto ao leme. Aqueles que o ouviram, dizem que fere sem dó. A juven­tude revolve céus e terras, clamando por danças. Existem daqueles que julgam a tombola o meio mais prático para pescar o dinheiro dos passageiros."Sledziennicy"   afirmam que é mais interessante deixar a cada um a liberdade de oferecer o que julga melhor, sem nenhuma festa. No próprio comitê reinam divergências, em vista do que alguns membros entregaram a demissão. 0 coitado do comandante tem muitos problemas. Será que a casca va­lera a pena a empresa? Em todo caso, graças a isto impera uma vida agitada no navio. Cada um do tesouro de sua sabedoria e experiência leva aos membros do comitê, em oferta, seu conselho e projetos. Todos se agitam, correm, sussurram, como se sobre eles pendesse al­gum acontecimento imprevisto.
Não faltam também aqueles que, irritados, por não serem convocados ao conse­lho, estão sentados taciturnos e irônicos, com a premonição de que sem eles nada sairá bem.
"Tout comme chez nous!"
Por ser a  noite, como diz o provérbio, o melhor conselheiro, aguardamos com impaciên­cia o que a aurora nos trará.
20 de abril
Não temos nem concerto, nem tombola, nem dança, mas simples coleta. Os "slednicicy” venceram e a história ou as razões desta vitória, são curiosas e com mui­to ensinamento...
.        No navio existem três partidos: dos brasileiros, dos argentinos e dos selvagens. 0 partido dos selvagens, composto principalmente de frances pensa apenas em como matar o enjôo. Pouco preocupa-se; com quem e como pode divertir-se, desde que se divirta. Entre os argentinos e os brasileiros corre uma mutua ma vontade e desavença. 0 que uns querem, com certeza os outros se oporão; o que diverte a estes,  enjoa aqueles. Passam uns ao lado de outros estufados, olhando de esguelha .
- 0 senhor viu alguma coisa mais camponia, que estes brasileiros - assopra aos meus ouvidos um argentino. - A 100 metros sente se neles comerciantes escravizados. Eles envenenam todo momento mais alegre no navio. Deus permitisse, viajaria com embarcações chinesas desde que soubesse que lá não encontrarei esses  semi-negros insuportáveis.
- Não!  afiança-me um brasileiro, não se pode suportar esses argentinos. São orgulhosos, insuportáveis e geralmente bobos. Não há que estranhar são neo-ricos, gen­te que do nada fez-se. A derrocada nada lhes ensinou. Garanto que em seu bolso o senhor não encontrara uma moeda de ouro, mas em troca seus bolsos estão cheios de papeis argentinos (miseráveis papeis) com os quais vão revestir em breve as paredes. Mas são tão orgulhos como se fossem, no mínimo Rotschild.
Escuto tudo isto, mumurando alguma coisa sob o nariz, em nome do principio que Deus deu duas orelhas para que saisse pelo outra, o que entrou pela primeira.
45
Nesta situação, poderia chegar a concretização algum projeto para uma diversão conjuntas Os senhores talvez chegassem a se entender, mas duas republicas femininas, ja­mais! Muitos parlamentares foram enviados, para trazer os contendores a um denominador comum. Esforços em vão! 0 fogo e a água se conciliam, mas as mulheres brasileiras e argentinas nunca! Em conseqüência trava-se uma batalha surda, oculta, mas violenta e sem perdão. Uma vez que na comissão, as duas partes eram iguais, cada projeto, na me­dida em que partia de uns, era estraçalhado pelos outros. Eis as razões porque hoje, ao invés de brincadeira, temos apenas uma coleta.
0 nosso comandante, todavia, spube explorar muito bem a situação. Delegou a missão da coleta a duas mais brilhantes representantes dos dois blocos  contendentes, determinando - lhes com exatidão as mesas que deveriam visitar.
Ao mesmo tempo entre nós, apartidarios, conquistou para sua causa, agentes secreto cuja missão era, durante o dia inteiro, lançar entre os blocos beligerantes alguns boatos. Garantimos aos brasileiros que os argentinos de cara ja deliberaram entre si reunir tal e tal importância. Essa notícia qual ráio contagiou todo o acampamento, incen­tivando para uma secreta licitação "in plus". Esses mesmos segredos traimos para os argentinos, alcançando o mesmo resultado.
Chegou a hora decisiva.
Mal foi servida a sopa,  eis que de ambos os lados da sala postaram-se dois pares de lindas esmoladorgas, com bandejas nas mãos e com faces ruborizadas de esperança da vitoria. Os dois opositores medem-se com olhos  em brasas. Cada papel moeda, cada moeda de ouro, num instante é percebida pela oposição que tão cordialmente e convictamente batem á generosidade de suas vítimas, embora com ar triunfante  carregam os olhos sobre suas adversárias.
- La o sr. B (brasileiro), deu 200 francos, grita alguém de uma outra mesa.
- Ehl  0 sr. W, responde uma linda argentina, ofereceu neste momento 300.
Quanto mais prosseguem as pedintes, o ardor das ofertas cresce.
Como tudo  tem o seu fim, também as esmoladoras retornam repletas de gloria e certas da vitória.
Contam a bandeja. Coletaram em torno de 5.000 francos. Mas, o desgraça!  Pela con­tagem mais adequada da lista dos ofertantes, convencemo-nos  que os brasileiros deram a mesma importância que os argentinos. Os dois partidos estão insatisfeitos profundamente com semelhante resultado.
Tal foi o resultado da luta entre os partidos do navio. Graças a Deus, desta feita elas terminaram com beneficio para os pobres e infelizes.
Os ecos dos choques das duas partes, ressoavam noite a dentro, como objeto de conversas acaloradas.
21 de abril
Quanto mais nos aproximamos do fim de nossa viagem, o tempo arrasta-se ainda mais. O comandante promete que amanha estaremos no Rio.  A máquina até agora não decep­cionou, há portanto esperança de que nos levara são e salvos. Singramos agora com ve­locidade normal.

            46
22 de abril
A partir das 11 horas ja contemplamos a terra firme. No momento, aparecem apenas sob a forma de morros descalva dos que a primeira vista e em face da distancia, semelham-se a nuvens, assentados sobre a fimbria do firmamento. 0 olho como que sedento pela longa ausência da terra, não  quer acreditar que ela se espraia diante dele, e aos poucos começa a reconhecer esta velha e decente conhecida e realmente ela! Os dentudos topos dos morros, espiam corajosamente para o céu e o oceano chora aos seus pés, tentando quebrar estas comportas  pedregosas. Em alguns lugares  con­seguiu penetrar dentro delas, mas com quantos sacrifícios? Basta ver os vagalhões que incessantemente batem nas paredes rochosas e cobertas de espuma e com um gemido de can­saço, cedem lugar a outras, para compreender quanta energia empregou este trabalho titânico. Em certos lugares quebra-se a corrente rochosa e o oceano com toda a veemên­cia, penetra no espaço aberto. Poderia parecer que suas ondas revoltas com esta reintrância, cobrem centenas de milhas das baixadas; eis que da terra surge um novo obs­táculo, são montanhas cobertas de matas virgens que se aninharam aos morros, buscando proteção, sob sua coberta contra os ataques de rapina do mar.
Tudo isto estimula a nossa fantasia, acorda a curiosidade,  embebe e enacanta. De tempos a tempos, a vista perpassa, bem como o pensamento, despreendida da visão encantadora, corre para as ondas pardacentas da estimada corrente e com saudade vagueiam entre os conhecidos.
47

V
Desembarque e primeiras impressões. Febre amarela. Saudação aos jornalis­tas. Artigo do Jornal do Comercio. Minhas reflexões. Gentileza dos senhores Alvarez Franklin e Filho, bem como do Senador  Gomezoro.
Mal a aurora prateada cobriu a baia, da neblina começou a surgir o fantastico Rio, como que para cumprindo ordens, de todos os lados acorreram barcos e pequenos navios a vapor. Fervilhou e agitou-se em torno do "Brésil". Horripilante estridor das sirenes, gritos dos remadores, mesclavam-se com o borburinho do convés. Todo ser vivo abandonava as cabines, carregando pequenos embrulhos. Em vista da febre amarela somente desembarcavam os passageiros com destino ao Rio, os demais tinham que permanecer no navio, para evitar a superpesa gradável quarentena em Montevideo ou Buenos Aires. Não impedia contudo que mesmo eles antes do amanhecer des­pertassem do sono. 0 desembarque somente tem tanto encantador, e além do mais convinha apertar a mão pela última vez de vários amigos e conhecidos da viagem de 15 dias, com os quais certamente não não nos encontraraemos em vida. Portanto em toda parte movimen­tação, chamadas em altas vozes, rizadas, últimas determinações dadas aos empre­gados, cordial "até a vista", ou "boa viagem!" - eram atirados para vários lados; numa palavra, uma vida febril e nervosa que era apenas observada pelas gaivotas, fla­nando no alto.
Às  7 horas veio finalmente a polícia marítima e a Comissão Sanitária. Em breve partiu de dezenas de corações o alegre" para terra firme".
Aproveitando a gentileza do Dr. Gad, cujo irmão residente no Rio veio receber com barco não precisamos tomar a embarcação pouc o conofortavel e fraca. Tinhamos pressa em sentir debaixo dos pés a terra firme, além do que todo momento perdido diante das obrigações que nos aguardavam, que aqui deveriam começar, parecia-nos irrecuperável. Portanto com pressa febril, deslizamos  com dificuldade por entre a multidão que aguardava, descemos pela escada do navio, onde nos aguardavam os funcionários da alfândega, para revistar os nossos pequenos pertences. As outras coisas deveriamos receber na alfândega central.
Mais um altissonante "Adieu!"  que foi respondido por agitação de lenços no navio e o nosso pequeno barco com velocidade de flecha, rasgou as ondas da ba­ia. "Brésil" aos poucos desaparecia de nossa vista em compensação  desenhava-se com maior clareza a Praça Dom Pedro, onde meia hora depois pisamos em terra firme.
Chegamos ao destino!
Terminou o insuportável balançar e os pés, como que não acreditando que po­dem pisar em dura calçada da cidade, tremiam debaixo de nós. Depois de tantos dias de calma, o movimento e o borburinho da cidade grande, pareciam-nos algo estranho, afugentador, mas ao mesmo tempo sentia-se uma necessidade insuperável de algum re­canto para se recolher.

            48
Lastimavelmente as notícias sobre a febre amarela, reinante no Rio de Janeiro, concretizaram-se. Neste ano era mais voraz e a estação epidêmica prolongou-se inusita-damente longe. Uma vez que é pouco hospitaleira para os estrangeiros, porisso nada mais nos sobrou a não ser escutar os conselhos dos experimentados e fixar-se fora da cidade, na Tijuca, onde a permanência é bem mais segura. Não foi tão fácil executar isto. Todos que possuiam quaisquer recursos, fugiam da cidade para os bairros. Todos os hotéis e vilas, em vista disso estavam superlotados. Em vão batemos de porta em porta; em nunhum lugar encontramos um canto para hospedar-se. Afinal, depois de algumas horas, quando a noite já descia, con­seguimos com muita luta um pequeno quarto no hotel Moreau, de onde decidi ir diariamente até a cidade e retornar á noite.
0 calor, especialmente na cidade, é enorme. A atmosfera é pesada, carregada com a evaporação que partem dos canais o que, mesclado a impureza que reina nas ruas, torna a permanência insuportável. A região na proximidade do porto é ainda pior. Simplesmente é impossivel passar por lá. Lembro isto para  oferecer uma noção, em que situação se encon­tram os emigrantes no Rio.
Cansados e  mortos da viagem e  com as preocupações do dia, fomos descansar. No dia seguinde de manhã já tivemos o dissabor em relação á nossa missão. Eis que o engenheiro polonês, sr. Rymkiewicz, aqui residente (sobrinho da falecida esposa de Sien-kiewicz e companheiro de Henrique, em Barcelona), trouxe-nos o diário "Jornal do Comercio", que nos saudou da seguinte forma.
Entrego este artigo em tradução textual, porquanto ele oferece a mais  eloqüente impressão quais devem ser as relações em vista da questão emigratória, já que desta forma eram cumprimentadas pessoas que vem estender a mão a gente infeliz. 0 artigo traz o titulo:
"Russos no Brasil". . "Lemos no "Nord" de Bruxelas do dia 28 de março. Escrevem-nos de Varsóvia o que segue: Em breve concretizar-se-á o  projeto de retornar do Brasil algumas centenas de aldeões, para que esses infelizes, ao narrarem aos seus patrícios sobre a sua triste sorte, que os  encontrou no Brasil, pusessem fim a onda emigratória, dispensável e impensada do Reino da Polônia. Dentro de alguns dias partem de Bremen, o padre Z. Chel- micki, colaborador do "Slowo" de Varsóvia e sr. Nicolau Glinka, cidadão terrestre, para durante algumas semanas estudar a situação dos emigrantes poloneses e fazer retornar ao Pais 700 ou 800 escolhidos entre aqueles, que assim o desejarem. Os círculos daqui colocam grande esperança na missão de Glinka e pe. Chelmicki.
" Nord", diário semi-oficial - escreve adiante o mais lido e mais influente orgão da imprensa brasileira - não  anunciaria sem conhecimento de causa uma notícia tão auspiciosa para nós. Não queremos prejulgar a sinceridade, boas intenções destes dois filântropos, que chegam ao Brasil, devem ser eles alimentados por grande zelo, pois certamente em sua terra encontrariam meios suficientes para minorar várias pobrezas e necessidades.
A missão de que se incumbiram os senhores Chelmicki e Glinka não é meramen­te de repórteres, como o Sr. Dygasinski o qual para interessar seus leitores, deveria ter  imaginação fértil e fantasia. Os novos emissários tem uma missão que muito de perto interessa ao crédito, bem estar e ordem publica no Brasil, para o que chamamos especial atençaõ do governo. Estes  enviados, sobre cuja vinda saberemos, tem uma missão danosa para o Brasil e com este mesmo direito que as autoridades russas perseguem os agentes da emigração parece-nos que o nosso governo deveria pedir aos senhores Chelmicki e Glinka para aban­donarem o nosso território, tão logo cheguem aqui.
49
0 mesmo deveria ser feito com cada estran­geiro que estivesse subvertendo a ordem!
Confesso que ha muito tempo nao tive alegria igual, como me causou o artigo acima.
Primeiramente, lança ele luz clara sobre as condições, em que haveremos de cumprir a nossa missão..
Em segundo lugar, permitiu-me formular uma imagem adequada, sobre os conceitos libe­rais dos republicanos brasileiros; em seguinda, o que é mais importante, sugeria o argumento, excelente para aqueles que em nosso país que ainda tenham alguma ilusão quanto às condições da emigração no Brasil, uma vez que a simples notícia sobre a vinda de dois elementos para trazer ajuda aos emigrantes, com os quais até agora ninguém falou no Rio sobre suas reais in­tenções e missão, serviu para motivo cabal afim de expulsa-los do país, antes que pudessem justificar-se com qualquer coisa a suspeita  de sua atuação nefasta.
É fácil concluir que não dispensei a satisfação para que ao prezado colega de pena, Sr. Rodrigues, não comunicasse minhas reflexões. Pode-se imaginar a cara do senhor Redator ao quem pára a pergunta quanto tempo pretendemos permanecer, respondi que primeiramente pen­samos em permanecer algumas semanas, atualmente porem esperamos, quando, de acordo com o seu orgão seremos despachados para o primeiro navio melhor, que parte para a Europa.
Acrescentei que não tivemos esta presunção que com a nossa modesta missão, pudessemos paralizar a emigração; desejávamos recobrar os sentidos dos enganados pelos agentes, todavia artigos semelhantos ao do Jornal do Comércio, permitir-nos-ão levar os nossos projetos bem mais avante.                                                                                                                                       
Aconteceu com isto uma coisa hilariante. No onstante em que mencionei com o mesmo navio, veio a corrrespondência do sr. Santana Nery, redigida adequadamente que o sr. Redator abriu na minha frente. No dia seguinte Jornal do Comercio inseriu a mencionada correspondência, jun­tamente com a minha carta negando que tivéssemos missão oficial e  esclarecendo o real mo­tivo de nossa vinda.
Outro diário igualmente influente "Do Brésil", massacrou seu colega pela leviandade de expulsar-nos do país, com não menor grau de veneno e sarcasmo descreveu o lado filan­trópico-humanitário de nossa missão. "Gazeta de Notícias" e "Paiz" limitaram-se a simples notícias de nossa vinda.
Naturalmente no Rio só se falava disto. Éramos apontados com dedo nas ruas. Alguns revoltaram-se com a indecência dos jornais, mas julgo que no fundo estavam satisfeitos com isto; isto revoltava sua preguiça pois ousamos vir para salvar os infelizes na casa deles.
Apesar desta drástica inospitalidade de uma parte da imprensa da Capital, na entrada no Rio não posso deixar de ressaltar um sincero reconhecimento e gratidão para o consul russo local, sr. Alvares Franklin e seu filho. Ambos estes senhores desdobravam-se em gentileza e prêstimos para conosco. Faziam isto com tal galanteria que em verdade algumas vezes éramos chocados. Igualmente muito gentil mostrou-se o senador Gomenzoro, com grande prestigio no Rio que generosamente ofereceu  sua influência e prêstimos.
50
V I
0 emigrante no Rio. 0 que o traz para cá? 0 clima. Passeio lacrimoso. Pai  e filho. Salários. 0 custo de vida e manu­tenção. A inevitável  queda (Zagjada). Energia do governo brasileiro. Na igreja.
Ao andar por uma rua da cidade, na área do mar, ou nas fétidas zonas encontrar um ser, semelhando a gente, com sinais de doença, com as faces  caidas, olhos  vidrados, abatido, mal se arras­tando, com roupas rotas e com boné surrado na cabeça, não pergunte: quem é? Pode estar certo que é emigrante polonês.
Tal é a indicação apresentada a cada um que a sorte levou para o Rio e o sentimento manda procurar as  infelizes vítimas da desgraça.
No momento da minha permanência no Rio, encontravam-se aproxima­damente 1.700 emigrantes. A maior parte deles são transfugas das colônias distantes, acuados para cá  pelo fantasma da morte de fome, que os aguarda nas matas selvagens, ou necessidades e miséria  nas plantações. Parecia a cada um deles que aqui todo navio que vem trazer-lhe-á um pouco de ar da terra abandonada com leviandade e juntamente com o ar a esperança de um re­torno mais fácil. Não conhecia naquela época pessoalmente, antes pressentia estes coitadinhos, por meio de narrações, a sorte dos colonos em várias províncias, mas prejulgava qual deveria ser a sorte e a sua vinda ao Rio foi ato de grande desepero.
Primeiramente afirmo categoricamente que o clima do Rio para um europeu e especialmente para o habitante  dos países mais afastados ao norte, é simplesmente mortal. Não só a febre amarela, colhendo entre eles numerosas vítimas, já constituia ameaça suficiente, mesmo sem ela a at­mosfera abafada, mal-cheirosa, o calor a penetrar na medula dos ossos, constitui-se constante e inefável sofrimento. Porisso de 500 emigrantes que vi nos primeiros seis dias de permanência no Rio, não encontrei nenhum, repito, que  pelo menos uma vez não tivesse uma doença mais prolongada. Muitos periodicamente a cada poucos dias caiam doentes. Dores de cabeça, diarréia, fraqueza, chagas, espinhos pelo corpo, eis as mais comuns e freqüentes doenças.
Não falo de crianças, pois estas de cara estão condenadas a morte.  Não! não aconselho a ninguém olhar para estes rostinhos tangidos pela miséria, enrugados, amarelentos, onde o anjo da morte já esculpiu sua marca. Não encontrei uma família, que não chorasse a morte do filho único, alguns  ou a todas as crianças.
51
Mas nisto não está o fim. Muitos chegam a capital com as energias com­pletamente esgotadas. Encontrei algumas dezenas que do Rio Grande do Sul, uma distância maior que de Nápoles a Varsóvia, fizeram a pé, no decurso de três meses, em maior parte com pão esmolado. Caminharam, acompanhando a costa  marítima. Cortaram matas virgens, escalaram montanhas. È fá­cil  imaginar como eles  parecem e quanto estão em condições para um tra­balho pesado que e indispensável para uma vida mais miserável.
Que sorte encontraram durante a viagem que ateste a seguinte narra­ção que procurarei  repetir praticamente ao pé da letra:
- Caminhamos - dizia Mateus, aldeão da região de Rypin - dia e noite, até onde as forças agüentavam. Durante semanas não tivemos na boca alimentação quente. No mato colhiamos frutas, sem saber se eram veneno­sas. De semanas a semanas encontrávamos colônias. Não pediamos esmolas por­que não nos entendiam, mas de fome chorávamos tão horrivelmente que a boa gente tinha pena e nos davam o que podiam. Em Porto Alegre sepultei a espo­sa e um filho de quatro anos. Conduzia a filinha Maria de seis anos. A coitadinha desmaiou e não podia caminhar. Carreguei – e a carregaria até os confins do mundo, mas era tão  pobre e magra que a cada instante olhava quando vai morrer. Então um brasileiro a quem Deus não deu  filhos,  insistia para que lhe cedesse a minha criança. Pensei que a vida vai fugir de pena, mas como estava para morrer, entreguei. Quis dar-me dinheiro, mas não aceitei, porque significaria que vendi o meu sangue. Preferi prosseguir em  frente, esmolar ou  perecer de fome.
Esta narração durou muito, porque era interrompida por choros con­vulsivos que nunca esquecerei. Tais exemplos em que seja-me Deus testemunha não há exagero, poderia citar a vontade.
Aqueles a quem a sorte foi menos cruel são visões da sorte de seus companheiros e tão abatidos com as narrações e deseperados que com jus­tiça quanto a situação moral e física coloco-os em condições de igualdade. Todos estão aturdidos e como que  bêbados com a desgraça.
E agora, ainda que suscintamente, desejaria, apresentar as condições de trabalho e de vida no Rio.
Primeiramente quanto as profissões, somente as de pedreiro, carpin­teiro e marceneiro mais facilmente oferecem ganhos. Os empregados recebem 3,4 e as vezes cinco milreis  diãrios (milreis, segundo o câmbio atual significa  cerca de 75 kop). Explica-se isto pois o Rio nos últimos anos cresce vertiginosamente em população  e construções. Seguem depois os ferreiros e celeiros. Seus ganhos são piores e mais arduos. Os alfaiates e sapateiros não encontram ocupação. Explica-se com o fato de que e outra a maneira de trabalho é estes ofícios principalmente são executados por fran­ceses e alemães, bem como  por processo de fabricação por muitos  empresários e especuladores. Estes últimos, como afinal todos os emigrantes somente tem um único meio de ganho, como operários nas construções na qualidade de car­regadores de pedras, cal e areia. 0 seu trabalho começa de 1½ milreis e chega a dois e meio ao máximo.
52
Para eles construiram barracos,onde por 200 reis, por pessoa (15 kop.) encontram pouso.
Os salários acima, á primeira vista podem parecer razoáveis. Doutra forma  eles se apresentam em vista  do custo dos artigos de vida e em geral da manutenção. Citarei  alguns principai artigos e seu preço; como: 1 quilo de carne custa 500 reis; 1 quilo de feijão - 300 reis; 1 litro de mandioca 300 reis; um pão de milho, arcendigerível - 100reis. Sobre a batatinha não há o que falar, porque esta como artigo importado da Europa, é objeto de luxo. Numa pala­vra segundo os preços atuais a manutenção mais necessária e mais hu­milde de uma pessoa custa 1 e meio mil reis. Deve-se acrescentar a isto mais 200 reis para pouso.
Dirá alguém que uma pessoa poderia desta forma ter a existência garantida de alguma  maneira. Pelo menos! Inicialmente  com freqüência trabalham pessoas totalmente inadaptadas ao trabalho pesado e cansatio. Estes mal podem  suportar este trabalho pesado três ou quatro dias na semana e nos demais a doença toma o seu tributo. Os mais fortes acostumaram-se ao suor, aguentam, mas ninguém, apesar disto não resistiu ás doenças acima mencionadas de alguns dias  ou até meses, a  uma ou mais delas. Além disto reina entre os emigrantes a prevenção que cada um que cai no hospital tem que morrer. Sofrem eles em barracos ou em casas. Tal doença consome não somente as forças e todos as  possivei reservas mas lança, por causa da necessidade, em dívidas.
Isto o que falei atinge apenas indíduos solteiros. O que dizer dos casados e carregados   com família? Aqui reina  uma enorme miséria e isto é acompanhado de uma lenta queda de energias e conseqüente impossi­bilidade de trabalhar. A sua vida tenho que chamar de uma lenta morte. Isto é uma necessidade inevitável!
Em verdade, recorro a minha mente, como o governo brasileiro poude permitir, que esta gente chegasse ao Rio, onde tudo se uniu  pa­ra seu aniqui1amento!
Porisso algumas semanas antes, vendo multidões de esfarrapados miseráveis poloneses, perambulando pelas ruas da cidade, a opinião pú­blica começou a revoltar-se para a indiferença  do governo, tanto mais que em função da febre reinante na "ilha das flores", onde se encontra casa dos emigrantes, não foi possivei acomoda-los lá e eram obrigados a dormir ao relento, nas praças públicas. 0 governo  decidiu dar um passo decisvo, mas qual? Eis que cercou com exêrcito e polícia os coita­dinhos, forçando a embarcar em navios e distribuir pelas diferentes colônias. Não  passou sem  "Płazów" e abusos, como separação das mu­lheres dos seus maridos, separação de famílias, etc.
Ardentemente desejava ajudar a estes coitadinhos com  o auxílio religioso. Depois de alguns dias consegui a permissão e encontrar a pequena igreja,
            53
"Du Partu" (Do  Parto?), na rua São José, onde rezei a eles a Santa Missa e ouvi onfissões.
A minha vocação, por sua natureza,  permitiu-me ver várias cenas a cortarem o coração. Esta entretanto quando pela primeira vez  encontrei-me na igreja, cercado por emigrantes, jamais esquecerei. Ouvi sbm: choro, mas semelhante a um gemido horrivel. Parecia-me que não somente da v i s t a  humana,  mas muros frios, jorravam lágrimas sangrentas  de dor e pena. Senti-me tão abatido e impotente que até as palavras de consolo morreram nos lábios.
            54

V I I

O calor no Rio. Os aspectos higiênicos. Vila Izabel. O barraco.  A narração de Morawczyk. 0 decreto da polícia. Dois engenheiros.  A festa dos Milusinski local. 0 último favor.  Ponte do Caju. A mi­séria indescritível. Sam Pajo.  Barracos.  Varsovianos.  A minha falta de jeito.

Se Sienkiewicz disse a respeito do sol  espanhol que morde, a respeito do calor daqui deveria dizer-se que  chupa. Assim, em verdade sentia que ele embebe-se no corpo, nos nervos, nos ossos e devagar suga as energias, a força, a vida. Não há jeito livrar-se dele; castiga  tanto no quarto, quanto fora ao sol ou na sombra. Pesa dentro da cabeça como chum­bo, aperta, como se fosse alicate, a testa e recobre toda a pele com uma gordura.
Estas propriedades do calor senti especialmente no Rio, realizando passeio em vários quarteirões dos subúrbios, bem como nos barracos, onde os emigrantes encontraram locação e recordo isto pelo fato de que fazendo a imagem sobre as condições de higiene, destas hospedarias sui generis tem que se ter em mente  o aspeto  climatico. Aqui1o que em nossas condições, ainda seria suportável, aqui simplesmente é mortífero.
Come lembrei  anteriormente, a principal ocupação dos emigrantes e na qualidade de operários em quebrar pedras e  seu carregamento nas cons­truções que neste instante parece que nascem da terra no Rio, como cogumelo após a chuva.  Várias companhias construtoras agenciam os emigrantes que vagabundeiam pela cidade e por preços ja mencionados oferecem-lhes ocupação e ao mesmo tempo a moradia a preço de 200 reis diários por pessoa, se es­te pouso merece ser chamado de moradia.
De manhã dirigi-me a Vila Izabel, localizada a alguns  quilômetros fora da cidade. Desembarcando do bonde e cheguei ao local, por uma estrada mal pavimentada. Uma vez que chovia copiosamente, os trabalhos estacam suspensos e encontrei no barraco todos os emigrantes.
Aquele barraco é um  edifício, feito de táboas , as pressas, estreito e comprido, construido em lugar úmido que  por grandes poças d'agua mal se pode chegar até lá. Em verdade porisso para que aquela pobre gente não ti­vesse que deitar na água, levantaram o prédio uma braça acima da terra, mas basta  adentrar para se convencer pelo cheiro do mofo sobre  a influência fatal da umidade. 0 barraco abriga 120 pessoas para as quais são estendidas camas de ferro de ambos os lados, em duas filas, uma junto  a outra e so­bre elas alguma coisa semelhante a  colchões, realmente trata-se de um amontoado socado de capim do mar, envolto  em trapo rasgado.
Á minha pergunta, se algumas vezes esses colchoessao trocados, foi me respondido:
55
- Sim, mas somente quando levam alguém para o hospital, ou quando morre; então quando o colchão dele e menos rasgado, colocamos o nos­so pior e levamos aquele.
Essa troca não é raridade, pois quase diariamente levam alguém para o hospital, de onde costumeiramente não retorna mais.
As mulheres, homens, crianças, rapazes e moças dormem juntos. 0 espaço entre os leitos é tão estreito e o corredor  entre as camas que se acham em sentido contrário é tão minguado que mal se pode pas­sar. Aqui soube que além dos 200 reis pelo pouso, nesta toca malcheirosa e embebidada de umidade, cada um é obrigado a pagar 1.600 reis ao guarda. Pelos dias santifiçados, quando alguém não trabalha, ou nos outros quando o trabalho é suspenso, como neste em vista da chuva, os operários não ganham nenhum pagamento. A companhia é tão escrupulosa quanto ao pagamento que deduz  400 reis mensalmente, pelo tempo destinado ao acerto de contas. Não há cozinha que é susbtituida por dois tijolos, arrumados pela família no pátio, onde cozinham em pote, feijão preto, com gordura ou pedaço de carne, se o ganho permitir a tanto.
Não vou descrever a cena dramática (dilacerante) dos cumprimen­tos. Cada um vinha com os olhos marejados de lagrimas e cada um descrevia sua desgraça com soluços. Encontrei aqui uma menina órfã de 12 anos, cu­jos pais faleceram, sustentada por toda a “colonia”.
Dentre todos, chamou-me a atenção uma figura alta, de porte atlé­tico. Era o único não-polonês, o muraviano Francisco Niederle da re­gião de Brno. Comecei a conversar com  ele em alemão e pelas primeiras palavras percebi  que fala  fluentemente  e de forma suscinta e por isso pedi que me descrevesse minuciosamente sua sorte no Brasil. Não era mera curiosidade, mas desejoso de me convencer se os nosos em suas narrativas não exageram e acima disto quando tive diante de mim um tipo de colono forte e esperto e consequentemente suas confissões constituiam para mim um interesse peculiar.
- Cheguei - dizia-me - ao Brasil juntamente com esposa e quatro fi­lhos com finalidade de um trabalho em verdade mais pesado, mas mais lu­crativo do que em minha terra natal. Dirigi-me a Província de Minas Ge­rais onde  na fazenda do sr. Geraldo encontrei alojamento. Parece que agradei aquele senhor, porque  propôs-me que fosse ao Rio com a finalida de de trazer dezoito famílias moravianas, prometendo porisso um pagament de 5 milreis diarios. Foi a minha primeira decepção. Ao retornar do Rio, cumprida a missão, o senhor barão somente pagou-me 2 milreis, de forma que do próprio bolso tive que pagar para as despesas de manutenção na capital. Recebi uma plantação para cuidar, mas em  vez de 6000 pés de café que são medida comum para uma família, recebi 11.000. Isto não é nada disse a mim mesmo, terei mais trabalho, mas em compensação ganharei mais. A mulher, eu e duas crianças pusemo-nos a  um trabalho horrivel. Trabalhamos por seis pessoas. Aguardei a colheita. 0 que aconteceu?
56
Depois 3 meses e meio desse trabalho  cansativo, descontada a manutenção, recebi 36 milreis. Além disso o fiscal começou a fazer vários desaforos. Não havia jeito, abandonei a colônia e vim para cá.
- Veja , padre - prosseguia, moro neste alojamento e recebo 3 milreis diários. Todas as reservas esgotaram-se. È possivel manter-me com isto com toda a familia? Pensei em abandonar  isto aqui e dirigir me em busca de sorte para as regiões da Bahia.
Para a minha  ponderação de que lá o clima é pior e as condiçõe insuportáveis: - Então, velha - disse a esposa que estava  prestes a chorar-então  temos que morrer aqui! Dito isto tomou com ambas as mãos a cabecinha  da criança menor e dois filetes de lagrimas rolaram pela sua face...
Voltando ao barraco, seu estado lamentável  poderá ser constata­do pelo fato de a polícia a dias atrás  reconheceu-o inadeuqado pelas condições de higiene e recomendou algumas modificações. A companhia fez protesto e  certamente o barraco continuara intangivel.
0 pessoal lembrou-me de dois engenheiros poloneses. Um sr. R. parece ser humanitário e compreensivel, em compensação o outro, um certo  silesiano, que tem prazer  não só em  perseguir o pessoal (znecaniu), mas rir de sua sorte. Tem uma aversão especial para as práticas religiosas. Os quadros de santos, escapularios, medalhas, provocam seu despreso. Não menciono o seu nome na esperança  que talvez estas pala­vras o toquem e  penetrando sua consciência modificara seu procedimen­to indigno.
Da Vila Izabel dirigi-me para outro lado do subúrbio, a Ponte do Caju, distante 75 minutos de trem.
Numa das ruas apresentou-se um quadro que julgo dever anotá-lo aqui. Três rapazes atrelaram num carrinho uma ovelha de um ano. 0 quarto rapaz instalou-se nesta equipagem original. 0 pobre animal mal puxava o peso. Para atiça-la  e apressar, um rapaz maior cobria com uma vara, os dois menores munidos de paus pontiagudos, com todas as forças picava nos lados. A infeliz criatura, sangrando e caindo a cada instante, arras tava-se.
Não há o que dizer,  de forma  bela formam-se os caracteres des­tes pequeninos! Crescerão certamente  nobres  protetores dos emigrante. 0 nosso caminho seguia  ao longo dos cemitérios.
-     A minha vista pousou sobre tipos característicos de carroças, em forma de um caixão preto, com  uma grande cruz desenhada com tinta ama­rela, com a inscrição em cima:" Hospital São Francisco Xavier".  Interessado prguntei ao vizinho de que se tratava. - Estão levando  os mortos de febre amarela para o cemitério,  respondeu-me brevemente.
            57
A carroça exatamente adentrava o portão do cemitério. Desembarquei do trem e fui atrás dei a.Desejava ver , como fazem aqui  os funerais a estes infelizes e ao mesmo tempo desejava fazer uma prece. Quem sabe, tal­vez estes que atirariam aqui o torrão para a sepultura, estiveram algure, longe além mar.
A carroça deteve-se diante do escritorio. Saiu um funcionário, abriu a porta, verificou o conteúdo, deu com a mão e a carroça, puxada por dois  burros, galopando seguiu em frente.
Segui, orientando-me pelo seu rastro.
Minutos depois encontrei-me num campo grande, descampado, aos pés de um porro de pedra. Pelos lados ardia  o fogo. Quatro  pessoas em camisas de mangas arregaçadas, apressavam-se. A carroça que acabava de chegar, juntou-se outra de duas rodas, usada para transportar táboas e tirada por um burro. 0 pessoal achegou-se a primeira, tiraram duas urnas baixas, estreitas, alongadas, com metade de uma porta, em dobradiças  e a outra não existia. Em cada  urna estava depositado um corpo.
Compreendi agora o que significavam algumas dezenas de caixões semelhantes, esparramadas por vários cantos do campo. Eram caixões provisórios.
Nesse meio tempo colocaram duas urnas na carroça puxada por um ani­mal que as levou a um grande valo, para o qual despejaram os dois corpos cobrindo com cal e uma camada de terra. Os caixões foram atirados para o lado, pois servirão a centenas de outros, a quem a municipalidade local negou quatro taboas próprias.
Garantiram-me que  sepultam da mesma forma  os outros, mesmo os que morrem não necessariamente de febre amarela, nos hospitais, os quais não foram procurados pela família.
Meu Deus, quantos nossos infelizes desceu aqui desta forma deshu-mana para dentro da terrai
Dez minutos depois achei na Ponte do Caju. È uma localidade suja, mal cheirosa que, em vista da proximidade do cemitério, hospital e corturm torna insuportável. Vencendo  os quarteirões amassando barro,  encontrei no destino.
Estão construindo uma fabrica sobre a água, que ocupa cerca doze famílias de nossos emigrantes, compostas de 36 pessoas, destas oito mulheres e doze crianças. Até há pouco tempo estes coitados dormiam sobre o muro. Posteriormente compadeceram-se deles e permitiram que deitassem num barraco. Entrenta porque aqui escorre a água, ajuntaram taboas velhas. Não se falava de colchão ou palha. Não recebiam eles nenhum pagamento, somente em dia de trabalho davam-lhes alimentação e isto somente para os adultos. Para a pergunta o que irão ganhar responderam: -Não sabemos, porque não os compreendemos.
São todas familias camponesas da província da Kalisz. Se disse que apresentam um estado de miséria e desespero, seria pouco. È  infelicidade e miséria que foge da imaginação. Tudo e rasgado e esfomeado.
58
As crianças choram de fome. É impossivel não lhes  entregar o ultimo schilling. To­dos  eles retornaram  ao país.  Não era possivel deixa-los aqui.
Apesar de ser  três da tarde, decidi ir até Sampaio, para onde vai-se de bonde em três quadrantes (45 minutos).
Lá encontrei uma situação um pouco melhor, do que na Vila Izabel. Para os casais fizeram separações. Em compensação o aperto é maior além do que em vista da baixa construção dos prédios, reina um ar abafado. Lá trabalha­vam cerca de 200 emigrantes, em maior parte varsovianos das mais variadas profissões. Conservaram suas caracteristicas próprias: tendência para sabidos e mandar com os outros (liderar).  Mesmo que  pagassem regularmente, muitos sobrecarregados com família passavam miséria. Em todo o caso, Sampaio causou me uma impressão menos assustadora do que os outros alojamentos. As doenças reinam igualmente aqui. Não encontrei nenhum satisfeito, todos  tiravam dos lábios para arrecadar para a volta. Especialmente as crianças causam dó, umas sesssenta cercaram-me, pegando as mãos e caindo aos meus pês.
Nisto terminei o meu passeio pelos barracos. Talvez aquela "felicidade brasileira" com que os agentes atiçavam os crédulos, não poderia apresentar-se diante dos meus olhos de forma mais monstruosa. A pena é fraca demais para  pintar a verdade real, mas em minha memória vive constantemente o qua­dro vivo desta  horrível desgraça e certamente  jamais o  esquecerei e per­derei de vista.
59

Nenhum comentário:

Postar um comentário