segunda-feira, 13 de setembro de 2010

S. Back./sangue polaco/

Correio do Povo
30.07.1983.
Porto Alegre

S.Back
           Mais de um milhão, contabili­zando os macróbios que orguhosamente balbuciam: "0 Brasil, aqui (referindo-se ao Extremo Sul), fomos nós que fizemos". Freqüen­tes vítimas de bazófia, raro quem lhes credita o mesmo padrão social devido aos demais imigrantes (muitos estudos metropolitanos até os ignoram, sole­nemente). Eles, por sua vez, preservam-se numa feroz trincheira cultural, além de professarem anticomunismo anacrô­nico e uma vocação religiosa milenar que os distingue a olho nu. Seu território estende-se do Rio Gran­de do Sul ao Espírito Santo (há bolsões em outros Estados), mos é no Paraná
que se concentram em maior número, a ponto de lá existir cunhada a expres­são "o polaco é nosso"; em São Paulo,; uma esotérica Polish-Hungarian World
Federation (para quem não sabe, polaco; e húngaro são amigos do peito na guer­ra e na farra) zela pelo panteão dos ancestrais históricos. Sem dúvida, uma comunidade "sui generis". Foi ela a qua mais verteu lágrimas na procissão de João Paulo II pelo Brasil. Segmentos irreconcilíaveis de imigração imigração, uns pró-Jaruzelski, outros anti-soviéticos, mais alguns com botões do Solidariedade no avesso da tapeia, todos em uníssono dançaram e canta­ram em louvor ao Estado capitalista do Vaticano. Um espasmo de ecumenismo político, "avantetapièslaletre"...
        Os polacos são assim: uma popula­ção brasileira quase invisível cujo patri­mônio mais desfrutável é á resistência," Resistem há séculos: a suecos, russos, austríacos, franceses, prussianos, nazis­tas e à Nomenklatura neo-czarista. E, aqui,   também,   continuam   resistindo, Até a si mesmos, por que não'... 
        Toda a Europa Central, ou essa de forma típica, queria sumir do mapa, sumir a fome cotidiana, ao açoite do acupante, à falta de trabalho, à exploração e ao achatamento cultural (da lígua e da religião) que as potências imperialistas da época (Prússia, Rússia e Áustria) impunham às populações submetidas. Tratados ou espólios de guerra, transmigração, o Estado polonês de há muito não passava de miragem.
       O insólito das estatísticas é a face im­ponderável que elas denunciam: entre 1871 quando oficialmente iniciou-se a imigração polonesa ao Brasil (dois anos antes, em Santa Catarina, os pioneiros não suportaram a pressão dos alemães e viram se escorraçados para Curitiba, no Paraná) e 1950 emigraram aos Es­tados sulinos mais de 100 mil polacos, 95 por cento deles, lavradores.   
          Mais números, nada desprezíveis: dêsde que o primeiro anglo-saxão pisou es­tas paragens com ânimo de ficar, p Brasil já arrebatou um contingente de 5,5 milhões de forasteiros (europeus e asiáticos), cifra quase idêntica a dos negros roubados à África em 250 anos de comèrcio. Italianos, alemães, russos, es­panhóis,  romenos, ucraínos, polacos, levas de campônios e extratos deserda­dos da Europa cansada de guera, agriIhoados pela ilusão da posse de um chão da usância do “senhor” ou “patrão” um horizonte sem o espectro do invasor, acreditaram que, finalmente, a Utopia estava ao alcance de quem pri­meiro a empalmasse.
         Mas, o Brasil, que executava o políti­ca imigratória de:''governar é povoar" - através do minifúndio -, jamais desenvolveu uma estratégia de acultura­ção. 0 imigrante era jogado, literalmen­te, jogado no mato, o sonho com a América luminosa, o Eldorado Brilhante e tudo mais, sua única tralha. E lá viu, pela primeira vez, entre perplexo e des­confiado, o primitivo dono da terra. No principio, ficaram se namorando, depois -o índio - irritado com as migalhas da caridade - foi retomar o que era seu.
          Na seqüência, os boches angariaram fundos para financiar bugreiros. Pelo gráfico indígena do Sul, dá para avaliar quem levou a melhor. Os polacos, de todas as etnias, foram os que mais sofreram com o abandono oficial. Cada colônia, uma ilha apenas amalgamada pelo Verbo Divino; a igreja era a escola, o parlamento, o mercado, o ambulatório, a biblioteca, o analista, o teatro, o campo santo. Esse sentimento de concha, que só nos anos mais recen­tes esboça abrir-se, resposta à inusitada assunção de um sumo pontífice patrício, não pode ser debitado apenas à falta de respeito da nação adotiva.
         Ao contrário de outras correntes imigratórias, a polonesa viu reproduzir-se no  além-mar  (afinal,   nos  trópicos,..)-grande parte da violência que deixara, virtualmente, sepultada.
           Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul em; 1871, portanto, quase cin­qüenta anos feudo alemão armados de um renitente olhar luso-brasileiro-germânico de mofa e superioridade de lata - recepcionaram os neófitos com uma pedra ern cada mão. Sobre eles desabaram reservas e discriminações de toda ordem, algumas ainda, sobreviventes: do econômico ("ao arado é preciso atrelá-los”) ao comportamento diário ("a palavra "polaco" passa a traduzi,' desordeiro"), da religiosidade ("polaca-da papa-hóstia") ao brio nacional ("tchim, tchim Pereira polaco não, tem bandeira"), culminando com o seguinte pitéu: "Não sou dos que combatem sis­tematicamente o elemento estrangeiro, não eu o quero na agricultura, na indútria e no comércio, porém não interferindo, como infelizmente aqui acontece, nos negócios públicos de minha pátria'' (Júlio Perneta, escritor paranaense citado por Ruy C. Wachowicz em O camponês polonês no Biasil, 1981).
           Talvez seja no Paraná que a anima po­laca encontra maior ressonância. E, ironicamente, também, o seu lado escuro (sem trocadilho...). É lá que se vulgarizou nacionalmente o conceito caolho de
que "o preto do Paran
á é o polaco” é de lá que os dois são considerados um o
reverso do outro, na torpe ridicularia  corrente.
         As origens disso se perdem nas primeiras décadas de sua estada numa Cu­ritiba com uma rala população de ne­gros escravos e livres: comum era que samento entre eles; ambos habitavam a periferia,  plantavam para as."pessoas; decentes", engomavam a roupa delas; serviam de iniciação sexual para seus filhos (mas, nos terreiros e forrós crioulos, os "enjeitados" da luz do dia se vingavam carnavalizando sua desgraça),
        0 passado não perdoa, está escrito filmado. O Brasil, no entanto, nessa sua relação quase mágica com os adventícios, acaba se redimindo à medida que os tempos bicudos viram foto amarelecida e os descencentes jamais imaginam ter nascido em país que não o Brasil. Nos velhos secaram as lágrimas de saudade; a mais antiga lembrança que habita a cabeça emoldurada pelo lenço colorido das "babkas" já sé nacionalizou. Nin­guém mais reconhece como sua a Eu­ropa distante, de ontem e de hoje. O sangue era de polaco, mas a vida, brasileira. 

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