“Correio do Povo” 19.03.1993
Porto Alegre
Sílvio Back
Naquele lusco-fusco entre ficar criança e ser moleque, ouvi pela primeira vez (e como esquecer?) a insólita cantilena: "Tchim, tchim, Pereira polaco não tem bandeira". O coro dançou sobre minha cabeça, miles e miles, como uma vespa; à sua lembrança, ainda hoje sinto tremores. '
Entre 1945 e 50, rebento de húngaro e alemã, morei numa cidadezinha litorânea (Antonina, PR), de fachada e comportamento coloniais, que de Imigrantes tinham os meus pais e o dono do chope da esquina. Penugem doirada, olho da safira, branquelo respingado, para todos os efeitos, antes que um espantalho magiar-saxônico, um polaco da gema. Não tinha como negar. A verdadeira identidade eu só a desnudava em casa, papagaiando o idioma de Gretchen, até então cassado.
Mas, não concluam que deixei a coisa assim, impune. Peguei a defender com unhas e dentes a nova pátria. Um inesperado Clark Kent étnico. As brigas mais hediondas e circenses, tudo por ela em reação animal aquém canto agourento (sobre cujo significado, aliás, não tinha a menor idéia). Intuía que na condição de “polaco” era preciso mais tinha a ménor ideia). Intuía que na condição de "polaco" era preciso mais uma vez (...) — resistir uma adivinhação escandalosa, solene. Nessas, nem sempre fui um herói de Munk ou A. Ford nas minhas batalhas de recreio, rua e rio. Amarguei cascudos, nome de mãe, baques às pampas e um cospe cospe infernal. Senti na carne o que é ser polaco no Brasil.
Em meio a essa guerra declarada, que durou anos, nacionalidades imbricadas, construí uma fábula sui-generis: no fundo, no fundo, eu acarinhava era uma volição secretíssima; não queria ser polaco de mentirinha e muito menos filho de alemão (ainda que racialmente meia porção). Acreditem: eu abominava minha cútis, me achava fora de esquadre entre os guris morenos, cocorutôs espetàdos, algumas carapinhas. Nunca consegui realizar esse encanto infantil: se confundido epidermicamente á um caboclo. Cresci morrendo de inveja. Já adulto, o "polaco sem bandeira cedeu lugar ao sofisticado, mas igualmente afiado, “o preto do Paraná o-polaco”. O vitupério, na verdade, contemplava a todos que não fossem explicitamente teuto - brasileiros, exceçãe tática de que os próprios às vezes não escapavam. Ambos, os epíritos — autêntica marca registrada nacional da colônia polonesa - são frutos do mesme preconceito, primo - irmão do mesme racismo.
No inconsciente coletivo do paranaensé continuava germinando o desprezo histórico nascido quando o primeiro po laço imigrante botou os pés no chão já amanhado pelo boche, em Santa Catarina (1869); na seqüência em Curitiba (1871), depois, século XX afora.
Foram anos de maturação, convivência e vivência até que eu chegasse ao espaço e a verticalidade com que esses prejuízos ainda hoje habitam o ventre dos paranaenses. Nem de todos, é claro. Por isso, sem nenhuma surpresa, ao fuçar testemunhos, iconografia e documentos para meu filme "Vida e Sangue de Polaco", flagrei o que residualmente já era imánente: são muitos poloneses, eles mesmos, seus descendentes de 2ª e 3ª gerações - aqueles segmentos agora Urbanos, "instruídos", ex - "casca, - grossa" (na torpe expressão corrente) - que ainda municiam a idéia da segregação. E mais, por, indução: acumpliciados á sociedade das "pessoas decentes" (pitéu dê crônica oitócentista) e, ironicamente aos extratos pobres, tradicionais mímicos, do discurso de seus algozes.
Assim, o sonho integrácionista,, ao menos é para os poloneses das colônias, do "cinturão verde" da Capital, do interior longínquo, ainda pensa feridas mal Curadas. Espectro morto-vivo, um provecto olhar - luso-germânico de mofa e superioridade de iata, vírus que se cola á surda distinção com que se louvam os negros, que ."sabem qual ó o seu lugar" Preto e polaco, farinha do mesmo saco? Pode até ser uma rima. Mas, no porão dela, uma polacada "que nã precisa tanto trabalhar" (do filme citado) escamoteia suas origens, tal qual, muitos mestiços. Um "melting pot" às avessas. Aliás, corno toda a aculturação do autóctone, do negro e do imigrante no Brasil. '
Filmes iconoclastas, valentes, desafiadores, desalinhados, rompidos com a cartilha zarolha do "realismo socialista" (Cinzas a Diamantes — Macek embrulhando - se, pespegado de sangue, rompendo por um varal de lençois brancos - ali a imagem pré-histórica do "Solidariedade" libertário?) Não é "por coincidência que Wajda filma nos estaleiros de Gdansk; a ficção sempre está mais próxima da verdade do que os escribas de plantão: O Homem de Mármore, O Homem de Ferro, mais que senhas: "O povo só tem um inimigo perigoso, o Governo" (do filme Danton, do próprio Andrzej Wajda).
Um escaravelho singrando areial cruza a tela; filme preto - e - branco a cores (.;.): só o ouro e a prata sobrevivem cromaticamente. Um achado de luz. 0 Foraó (1965): Kawalerowicz me fala das filmagens, duras e sofridas — entre perfumaria etílica, numa noite qualquer da Curitiba dublinense (nosso Liffey é o rio Belém), entre olhares cintilantes da madre Joana dos Anjos de pernas peludas e cetim no colo sardoso (o tempo assaltou - me a foto autografada da etérea Lucyna Winnicka), — fui excitado a abandonar tudo e cinematografar na Polônia, quem sabe, assistir à montagem da odisséia egípcia reconstituída nos desertos da URSS; me amedrontei; quando dei conta, terremoto institucional tornava réu inconfesso o mortal que, inocentemente, pensasse na Europa Oriental, que dirá ter em casa um cartaz de "Sanson".
Jovem ilusão a minha acreditar que o Brasil de 64 e a Polônia "comunista” (...) fossem incompatíveis: perdi a bolsa para a Escola de Cinema de Lodz, melhor que o IDHEC de Paris e o Centro Experimental de Roma. Sobre aqueles países: o Castelo Branco deles viria a se chamar Jaruzelski (com atraso devolvemos a inspiração do "Estado Novo", surupiada Constituição fascista, a "polaca", do marechal Pilsudski..,); quanto a mim, agradeço a fada - madrinha que segurou algumas das minhas convicções, ainda hoje, as menos passageiras...
Não se deve retomar amor antigo. Há dez anos, em solo polonês, tolamente e romântico tentei recuperar o travo de sonho, de quimera e ideal cinematográficos, a anima do povo que eu só aspirara pelo celulóide. Auschwitz, um zoológico do horror e da amnésia (percorri - o sozinho), subrock na boate Sigma, um homem com tatuagens no lábio, um trem em convulsão, batatas pelando, repolho adocicado e um olho esfomeado (maçã ao forno?), a 1a classe reservada á "Nomehklatura"; conservação cerúlea dá casa de Copérníco sintomático?), escombros de bombardeio, beijos e afagos e ofegos e ódios secos, os cafés parisienses de Varsóvia, herbata e anilina (um jardim macróbio); Cristo ou .Stalin á estudante se oferece trêmula por cinco dólares; o povo dança ao som da "Polonaise", fezes bóiam ao som de ocarina fétida; esqueletos moribundos afogam "kaput" na lama (á beira dá cerca de arame farpado - "Hoch Spannung") mulheres chicoteadas na bunda ("não esqueceremos"); Tony Curtis atropela locutor que lhe traduz as falas; o motorista particular rouba passageiros aos táxis; "... só não exijam de mim que diga o que penso, nem em que penso" (Hlasko); vodca russa incensada ao sol das duas da madrugada; o burocrata de Cracóvia projeta aposentadoria ás margens do rio Iguaçu, pescando larmbari; Film Polski recusa A Guerra dos Pelados: "o povo quer ver chanchadas da Atlântida e não violência política" (deu no que deu...) — quarenta filmes, uma arrebatadora fantasia plantou-se meu cotidiano polaco e a memória; fui feliz e intetiz milhões de quadros por segundo, tantos quantos eu vi, revi e inventei.
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