segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Sem bandeira. Sílvio Back.

“Correio do Povo” 19.03.1993
Porto Alegre
Sílvio Back
Naquele   lusco-fusco   entre   ficar criança e ser moleque, ouvi pela primeira vez (e como esquecer?) a insólita cantilena: "Tchim, tchim, Pe­reira  polaco não tem bandeira". O co­ro dançou sobre minha cabeça, miles e miles,   como  uma  vespa;  à  sua  lem­brança, ainda hoje sinto tremores. '
Entre 1945 e 50, rebento de húngaro e alemã, morei numa cidadezinha lito­rânea (Antonina, PR), de  fachada e comportamento coloniais, que de Imi­grantes tinham os meus pais e o dono do chope da esquina. Penugem doirada, olho da safira, branquelo respingado, pa­ra todos os efeitos, antes que um es­pantalho magiar-saxônico, um polaco da gema. Não tinha como negar. A ver­dadeira identidade eu só a desnudava em casa, papagaiando o idioma de Gretchen, até então cassado.
Mas, não concluam que deixei a coisa assim, impune. Peguei a defender com unhas e dentes a nova pátria. Um ines­perado Clark Kent étnico. As brigas ma­is hediondas e circenses, tudo por ela  em reação animal aquém canto agourento (sobre cujo significado, aliás, não tinha a menor idéia). Intuía que na condição de “polaco” era preciso mais tinha a ménor ideia). Intuía que na condição de "polaco" era preciso mais uma vez (...) resistir uma adivinhação escandalosa, solene. Nessas, nem sempre fui um herói de Munk ou A. Ford nas minhas batalhas de recreio, rua e rio. Amarguei cascudos, nome de mãe, baques às pampas e um cospe cospe infernal. Senti na carne o que é ser polaco no Brasil.
Em meio a essa guerra declarada, que durou anos, nacionalidades imbricadas, construí  uma   fábula  sui-generis:   no fundo, no fundo, eu acarinhava era uma volição secretíssima; não queria ser polaco de mentirinha e muito menos filho de alemão (ainda que racialmente meia porção). Acreditem: eu abominava minha cútis, me achava fora de esquadre entre os guris morenos, cocorutôs espetàdos, algumas carapinhas. Nunca consegui realizar esse encanto infantil: se confundido epidermicamente á um caboclo. Cresci morrendo de inveja. Já adulto, o "polaco sem bandeira cedeu lugar ao sofisticado, mas igualmente afiado, “o preto do Paraná o-polaco”. O vitupério, na verdade, contemplava a todos que não fossem explicitamente    teuto - brasileiros,  exceçãe tática de que os próprios às vezes não escapavam. Ambos, os epíritos autêntica marca registrada nacional da colônia polonesa - são frutos do mesme preconceito, primo - irmão  do  mesme racismo.
No inconsciente coletivo do paranaensé continuava germinando o desprezo histórico nascido quando o primeiro po laço imigrante botou os pés no chão já amanhado pelo boche, em Santa Catarina (1869); na seqüência em Curitiba (1871), depois, século XX afora.
Foram anos de maturação, con­vivência e vivência até que eu chegasse ao espaço e a  verticalidade com que es­ses prejuízos ainda hoje habitam o ven­tre dos paranaenses. Nem de todos, é claro. Por isso, sem nenhuma surpresa, ao fuçar testemunhos, iconografia e do­cumentos para meu filme "Vida e San­gue de Polaco", flagrei o que residual­mente já era imánente: são muitos po­loneses, eles mesmos, seus descenden­tes de 2ª e 3ª gerações - aqueles seg­mentos agora Urbanos, "instruídos", ex - "casca, - grossa" (na torpe expressão corrente) - que ainda municiam a idéia da segregação. E mais, por, indução: acumpliciados á sociedade das "pessoas decentes" (pitéu dê crônica oitócentista) e, ironicamente aos extratos pobres, tra­dicionais mímicos, do discurso de seus algozes.
Assim, o sonho integrácionista,, ao menos é para os poloneses das colônias, do "cinturão verde" da Capital, do inte­rior longínquo, ainda pensa feridas mal Curadas. Espectro morto-vivo, um provecto olhar - luso-germânico de mo­fa e superioridade de iata, vírus que se cola á surda distinção com que se lou­vam os negros, que ."sabem qual ó o seu lugar" Preto e polaco, farinha do mesmo saco? Pode até ser uma rima. Mas, no porão dela, uma polacada "que nã precisa tanto trabalhar" (do filme citado) escamoteia suas origens, tal qual, muitos mestiços. Um "melting pot" às avessas. Aliás, corno toda a aculturação do autóctone, do negro e do imigrante no Brasil.     '
       Filmes iconoclastas, valentes, desafi­adores, desalinhados, rompidos com a cartilha zarolha do "realismo socialista" (Cinzas a Diamantes Macek embrulhando - se, pespegado de sangue, rompendo por um varal de lençois brancos - ali a imagem pré-histórica do "Solidariedade"  libertário?)  Não é "por coincidência que Wajda filma nos esta­leiros de Gdansk; a ficção sempre está mais próxima da verdade do que os escribas de plantão: O Homem de Mármore, O Homem de Ferro, mais que senhas: "O povo só tem um inimigo pe­rigoso, o Governo" (do filme Danton, do próprio Andrzej Wajda).
Um escaravelho singrando areial cru­za a tela; filme preto - e - branco a co­res (.;.): só o ouro e a prata sobrevivem cromaticamente. Um achado de luz. 0 Foraó (1965): Kawalerowicz me fala das filmagens, duras e sofridas entre per­fumaria etílica, numa noite qualquer da Curitiba dublinense (nosso Liffey é o rio Belém), entre olhares cintilantes da ma­dre Joana dos Anjos de pernas peludas e cetim no colo sardoso (o tempo assal­tou - me a foto autografada da etérea Lucyna Winnicka), fui excitado a abandonar tudo e cinematografar na Po­lônia, quem sabe, assistir à montagem da odisséia egípcia reconstituída nos de­sertos da URSS; me amedrontei; quan­do dei conta, terremoto institucional tornava réu inconfesso o mortal que, inocentemente, pensasse na Europa Oriental, que dirá ter em casa um cartaz de "Sanson".
            Jovem ilusão a minha acreditar que o Brasil de 64 e a Polônia "comunista(...) fossem incompatíveis: perdi a bolsa para a Escola de Cinema de Lodz, me­lhor que o IDHEC de Paris e o Centro Experimental de Roma. Sobre aqueles países: o Castelo Branco deles viria a se chamar Jaruzelski (com atraso devol­vemos a inspiração do "Estado Novo", surupiada Constituição fascista, a "polaca", do marechal Pilsudski..,); quanto a mim, agradeço a fada - ma­drinha que segurou algumas das minhas convicções, ainda hoje, as menos passageiras...
            Não se deve retomar amor antigo. Há dez anos, em solo polonês, tolamente e romântico tentei recuperar o travo de sonho,   de quimera  e ideal  cinemato­gráficos, a anima do povo que eu só aspirara pelo celulóide. Auschwitz, um zoológico do horror e da amnésia (percorri - o sozinho), subrock na boate Sig­ma, um homem com tatuagens no lá­bio, um trem em convulsão, batatas pe­lando, repolho adocicado e um olho es­fomeado (maçã ao forno?), a 1a classe reservada á "Nomehklatura"; conservação cerúlea dá casa de Copérníco sintomático?), escombros de bombardeio, beijos e afagos e ofegos e ódios secos, os cafés parisienses de Varsóvia, herbata e anilina (um jardim macróbio); Cris­to ou .Stalin á estudante se oferece trêmula por cinco dólares; o povo dança ao som da "Polonaise", fezes bóiam ao som de ocarina fétida; esqueletos mori­bundos afogam "kaput" na lama (á beira dá cerca de arame farpado - "Hoch Spannung")  mulheres  chicoteadas  na bunda   ("não   esqueceremos");   Tony Curtis atropela locutor que lhe traduz as falas; o motorista particular rouba pas­sageiros aos táxis; "... só não exijam de mim que diga o que penso, nem em que penso" (Hlasko); vodca russa in­censada ao sol das duas da madrugada; o burocrata de Cracóvia projeta aposen­tadoria ás margens do rio Iguaçu, pes­cando larmbari;   Film  Polski  recusa  A Guerra dos Pelados: "o povo quer ver chanchadas da Atlântida e não violência política" (deu no que deu...) quaren­ta   filmes,   uma   arrebatadora   fantasia plantou-se meu cotidiano polaco e a memória; fui feliz e intetiz milhões de quadros por segundo, tantos quantos eu vi, revi e inventei.

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